quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Quando a Igreja vai sair do armário?


Parece não haver dúvidas para o mundo que a Igreja está no armário. Trancou-se por dentro, e se recusa a abrir a porta, ainda que seja por um breve tempo para diminuir o cheiro de mofo acumulado por séculos.
De dentro do armário, todavia, ela julga o mundo: vendo-o por uma pequena fresta de luz. Desta pequena fresta, ela supõe compreender toda a complexidade da realidade contemporânea, mesmo enxergando apenas uma parte muito pequena e limitada.
 Quando por essa fresta de luz entra um ar de qualquer de novidade, a Igreja esforça-se por diminuir ainda mais esta comunicação com o mundo exterior.
Assim, enquanto o mundo de fora busca se iluminar, a parte de dentro do armário fica cada vez mais escura. E mesmo no meio de uma densa escuridão, quase sempre geradora de apatia e medo, a Igreja institucional continua a repetir uma visão histórica determinada e particularista, mas que sob a ótica da escuridão quer apresentar-se como algo eterno, uma vez que “no escuro todos os gatos são pardos”.
Há, pois, uma confusão de tipo lógico entre: universal e particular, interior e exterior. Em suma, uma visão turva entre: temporal e eterno. Aquilo que é meramente transitório e particular é concebido como universal e perene.
Veja-se, como exemplo desta visão turva, o apego exagerado pela Liturgia, pelos ritos e cerimônias. Isto se verifica muitas vezes nas vozes que se levantaram e ainda se levantam contra o aggiornamento do Concilio Vaticano II.
 Ora, mesmo nos movimentos aparentemente em sintonia com as novas formas de evangelização,particularmente a Renovação Carismática Católica, nutrem um apego exacerbado às antigas formas de Liturgia.
Com efeito, o cristianismo midiático dos carismáticos é uma construção híbrida, típica da mentalidade atual, pois se a forma é pop, o conteúdo é tradicionalista: por fora novo, por dentro velho.
 Alguns reacionários vestem-se de antiguidades, mas no conjunto mais amplo da Igreja institucional nem todos são assim. Trata-se de uma estratégia assaz dissimulada: vestes novas para um corpo doutrinal velho. Em uma época como a nossa, na qual a beleza e a juventude tornaram-se uma obcessão estética social difusa, apresentar algo velho não faria muito sucesso.
Logo, ser preciso adotar uma face jovial e “antenada”. Pode-se participar de um rito antigo, mas haverá um recado na rede social: “#partiumissaemlatim”.
Ah, o Latim! Se pudessem, isto é visível, os carismáticos fariam do latim a língua oficial do movimento, alçando-o de novo como única língua capaz de comunicar o sagrado. Sim, aquela língua considerada divina e pura: a língua litúrgica por excelência.
 Porém, poucos deles sabem que esta língua tão venerada, a única considerada digna da melhor liturgia romana, desde o século XVI, foi diagnosticada pelos renascentistas como uma língua de/e para “homens gagos”. Digna não do ofício divino, mas de homens “bárbaros”.
Já bem sabiam os renascentistas que não há uma “língua divina”, imaculada, pura; e que se presta apenas à Liturgia. As línguas não visam satisfazer liturgias, nem tampouco podem ser mantidas vivas mesmo após sua morte.
Defender o latim como única língua litúrgica significa se apegar em uma artificialidade, reduzindo as capacidades linguísticas à mera instrumentalidade de um tradicionalismo caduco. Toda língua é factível, relativa, impura e desobediente.
 Urdida na trama no tempo, tecida na história e guardando a própria historicidade, a língua é o vestígio mais vivo das construções hodiernas comuns. Por isso, conceber uma língua litúrgica pura nada mais é que querer fazer preponderar os particularismos como universalidade total.
 É tentar extrair razoabilidade do absurdo. Tal encontra-se embebido de violência, visto ser propriamente violento todo gesto que torna absoluto o relativo. Uma língua é tão sacra como qualquer outra, pois todas guardam a capacidade de comunicar, a capacidade de estabelecer afetos e liames comuns, e sem estes, não há religiosidade possível.
 Parece pouco crível que, simplesmente por realizar ritos litúrgicos em uma língua morta, o rito se torne mais solene e sacro. Longe da língua comum, o rito litúrgico se torna apenas exótico. Isto é um prato cheio para os carismáticos midiáticos, pois quanto mais híbrido e exótico, mais solúvel na cultura pop.
Mas qual a relação de toda essa digressão sobre língua e litúrgica com o propósito deste texto, que objetiva tratar sobre a possibilidade da Igreja sair do armário?
Ora, não é de se admirar que os mais reacionários no campo da moral sexual sejam justamente os mais apegados aos ritos litúrgicos antigos. Aqueles que defendem a volta do latim litúrgico são os mais misóginos, maiores cultivadores de toda fobia de cunho sexual.
Mas, como poderia ser diferente, se o primeiro e mais arcano armário da Igreja Institucional é o armário da imposição do celibato. De dentro de seus armários (aqui se pressupõe, em uma mistura de “ingenuidade” e ironia que todos os padres são celibatários) aqueles que abriram mão do campo sexual julgam a sexualidade?
Beirando o absurdo e o ridículo, a condição da Igreja Institucional, ao tentar impor uma visão tradicionalista e retrógrada da sexualidade, é tal como se pedíssemos a um amigo vegetariano que nos recomendasse o melhor restaurante de carnes da cidade.
Nadadores falam de natação, psicólogos de psicologia, administradores de administração, mas no caso da Igreja é como se um Eunuco ditasse ao mundo as regras daquilo que ele não prática, apenas observa. Não se pergunta ao agricultor sobre as melhores condições para a pesca.
 Com efeito, é pouco crível que uma senhora possa aconselhar-se com seu pároco sobre como prolongar as horas de prazer com seu esposo. Aquela senhora sabe, ou pelo menos supõe que padres não possuem vida sexual ativa.
Ora, o espaço do armário é pequeno, lá não cabe vida a dois, mas apenas um.
Todavia, o armário da Igreja é grande e se chama Tradicionalismo: às vezes pudico, outras oportunista. Dentro desse armário maior cabem outros armários menores.
 Aquele que está no armário do tradicionalismo litúrgico, estar ao mesmo tempo no armário da vanguarda do atraso das questões ligadas à sexualidade. Um armário dentro de outro armário: hipérbole do medo e do fechamento, tal nos apresenta a Igreja Institucional.
Não é de hoje, que no seio da hierarquia eclesiástica, os mais reacionários são aqueles que defendem uma liturgia impecável: obsessivos por liturgia, pouco importando outras dimensões. Para estes mais vale o rito litúrgico que a prática da caridade. Se no mundo desencantado da sociedade contemporânea há um rito sem mito, a Igreja caminha na via do rito pelo rito.
O apego excessivo e exclusivista à liturgia produz uma confusão que faz dos particularismos algo universal. Esta confusão de tipo lógico é a mesma daqueles que defendem a moral sexual da Igreja como única e universal, válida sempre e para todos.
 Quem pensa que a missa em Latim é a norma imprescritível da Liturgia, também pensa que a heteronormatividade é a lei sexual imprescritível. Norma litúrgica e norma sexual se confundem. Se nada pode ser modificado na Liturgia, nada pode ser modificado na moral sexual.
 Ora, sempre foi prática da Igreja, ao realizar concílios, não construir novas práticas, mas sim referendar aquelas antigas e usuais: os concílios quase sempre discutiram para não mudar.
Tal não ocorreu com o Concílio Vaticano II. De fato, após o Vaticano II, a Igreja não saiu do armário, porém abriu um pouco mais a fresta, e pode enxergar melhor o mundo. Porém, é preciso reconhecer, com sinceridade, que boa parte dos avanços aí estabelecidos ficou no solo das discussões litúrgicas. Segue-se que após
o Vaticano II, no campo das questões da sexualidade, quase nada se modificou ou foi discutido com autêntico interesse. Por isso, as atuais vazias discussões dos apelos litúrgicos tendem a ser a linha de frente daqueles setores mais reacionários. De dentro do armário do tradicionalismo litúrgico busca-se impedir que outros armários sejam abertos.
Porém, era sabido entre os antigos historiadores latinos que quanto maior o exagero das instituições em suas cerimônias, quanto maior o apelo ritualístico, maior o grau de corrupção em que elas se degeneram. Assim, os exagerados virtuosismos litúrgicos, que vão desde os preciosismos nos paramentos ao modo como se deve pegar no turíbulo, revelam uma crise de identidade acentuada, gerada por uma hemorragia não contida. Ora, sendo a liturgia o aspecto mais visível da realidade da Igreja institucional, não há melhor meio para aplacar um golpe hemorrágico do que se prender ao aspecto mais externo e de maior visibilidade. Todavia, a identidade não está restrita só aos aspectos vivíveis, ao rosto, mas também aos atos, e não há identidade sem atos de reconhecimento.
 Nesse sentido, a lógica do armário impede qualquer reconhecimento, pois como se pode reconhecer escondendo-se?
Em uma inquietação difusa entre sair e ficar no armário, após o Concílio Vaticano II, a Igreja opta na maioria das vezes em continuar no armário. De dentro do armário, a Igreja não pode operar atos de reconhecimento, pois sua visão limitada da realidade impede uma visão do diverso, e sem está não possibilidade de qualquer reconhecimento.
 Daí restando apenas as idiossincrasias, típicas de um lógica de poder perversa que não reconhece nada que escape ao seu modelo pré-estabelecido. De dentro do armário, não há diverso, nem reconhecimento. Desse modo, antes de qualquer coisa, é preciso romper o armário do Tradicionalismo-Cerimonialismo, a fim de que o importante não seja com quem se vai pra cama, nem o que se faz nela, mas sim se há uma cama, se há alguém com quem se possa partilha o afeto e a sexualidade.
 Ora, não foi contra toda carência que o Cristo se definiu: “Eu vim para que todos tenham vida, que todos tenham vida plenamente”, (Jo, 10, 10). Talvez os que se deixam impor ao celibato esquecerem-se dessa pequena, porém profunda frase. De fato, não possuí vida plena, quem recusa, ainda que por amor à vocação, uma sexualidade ativa e sadia. Enquanto a Igreja não sair do armário do tradicionalismo e do celibato imposto, não se pode esperar mudanças na sua visão da sexualidade: nada melhor do que aí estar poderá aparecer.
 Quem se fechou à sexualidade não pode compreender satisfatoriamente a dimensão sexual em suas múltiplas facetas: quer hetero, quer homossexual ou bissexual.
Daí cabe indagar: poderá Francisco, este Quixote do Vaticano, batalhar contra os “moinhos de vento” do falso moralismo sexual, da secular misoginia sacerdotal, em suma contra a homofobia e demais formas de preconceitos alicerçados na identidade de gênero e nas diversas práticas sexuais? Se no clássico de Cervantes, o engenhoso fidalgo era derrotado por gigantes que nada mais eram que moinhos de eventos, veja-se a hercúlea empresa de Francisco: debelar-se contra gigantes de fato. Não apenas imaginados,porém cruelmente reais.
(Fran de Oliveira Alavina)

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Cristianismo Ostentação


Ostentar: eis a máxima a ser seguida por toda e qualquer existência, que se queira integrada na atualidade. Ostenta-se tudo, todos ostentam: eu ostento, tu ostentas, nós ostentamos. Tudo passa, mas a ostentação fica. “Céus e terras passarão”, mas as ostentações não passarão: proclama a cínica Boa Nova do presente. Perdura, a ostentação, não como simples perenidade, porém perdura na caducidade. Ostentar é um ato efêmero, como quase tudo no horizonte cultural contemporâneo, mas sua efemeridade dobra toda perenidade arrogante. A ostentação perdura por não se apresentar sempre de modo único e singular, como algo único e sem repetição, pelo contrário perdura exigindo uma repetição incomensurável. Resultando disso um rito, uma liturgia da cópia. O ato de ostentação se finda rapidamente, ele não deve durar mais que o espaço entre sua epifania e o imediato reconhecimento social. Logo, a ostentação precisa ser repetida infinitamente, perdurando, portanto, na repetição. Isto é, nada de novidades totais, singularidades impossíveis de se tornarem cópias, cabem apenas pequenas mudanças que não alterem a forma.
Ora, a forma da ostentação é única, ela não faz qualquer discriminação de cor, de classe social (todos são consumidores, portanto ostentadores, o que se altera é apenas a quantidade e os “bens” consumidos), de nacionalidade ou de Religião. No caso do espaço simbólico do sacro, a forma de ostentação é a mesma, ainda que nossos credos destoem. Existindo uma forma unívoca, a aparência é a mesma, igual para todos, por conseguinte todos estão irmanados e unidos. Trata-se de um ecumenismo já realizado, perversamente realizado: o ecumenismo da ostentação. Podemos ostentar nossos diferentes credos juntos, posto que unidos pela mesma forma de ostentação, ainda que nos odiemos mutuamente. Em um mundo, no qual todo “cristão” é cotidianamente um potencial apóstata da sua fé, o “amai-vos uns aos outros” cedeu lugar ao “ostentai-vos uns aos outros”. Nada de promessa de vida em plenitude, mas sim ostentação absoluta, completa. Ostenta-se tudo: em primeiro lugar, a própria vida, a vida privada, os afetos e os respectivos objetos de afeto (estes ostentados como prêmios, principalmente quando se trata de namorado (a) ou filhos), ostenta-se os infinitos acontecimentos do cotidiano, pra onde se viaja, onde se está, o que se come ou bebe, os livros e as leituras feitas, o saber adquirido, a própria suposta sagacidade, ostenta-se até mesmo a espiritualidade (ainda que esta nunca deixe de ser interioridade, por isso não se adequando completamente à visibilidade total), ostenta-se a própria fé. Contudo, toda ostentação se apresenta como imagem constituída dos seguintes elementos: devem ser atrativas, por isso devem ser belas para tornar extremamente visível a felicidade. Depois de tempos da felicidade imposta pela globalização do consumo, chegou o tempo da ostentação da felicidade. Ostentar: eis o novo mandamento, ao qual o mundo nos impele incondicionalmente. Ostentai sempre e mais, fazei de tudo na vida, algo para ser ostentado. Ostenta até mesmo a tua dor, se não é possível ser feliz sem ostentar a própria felicidade, também não é possível sofrer sem se ostentar as próprias mazelas.
Ao lado deste caráter pervertido, que atinge o espaço do sagrado, isto é a ostentação do sacro e da fé, se acresce outro aspecto: a relação tragicamente dinâmica entre consumo e ostentação. Os objetos de consumo não são feitos apenas para “simplesmente” serem consumidos. O consumir em si mesmo perdeu seu sentido, não possui mais escopo, se é que um dia o teve. Está ultrapassada a barreira do consumir pelo consumir. O real sentido do consumo, hoje, encontra-se na ostentação: consume-se para se ostentar. Qual a graça de consumir anonimamente? Sem a maior visibilidade possível? Sem a paranóia imagética? Esta paranóia, ao mesmo tempo sádica e masoquista, garante o dissimuladoassentimento social, e sem este consumir não apresenta o menor prazer. Ademais, fora do signo do prazer e da excitação horizontal tudo perde sentido na atualidade. Se a máxima é ostentar, não se deve olvidar que, além disso, vive-se sob o império do poder difuso das imagens. Isto é, no reino do imagético onde nada é, mas tudo apenas parece. Assim, a excitação social se volta diretamente ao visível, ao puro aparecer, dissolvendo qualquer alteração harmoniosa entre os outros sentidos e a sensibilidade. Entre os objetos e suas respectivas imagens não há mais limites ou diferenças. As coisas não são o que são, mas o que parecem, não são elas mesmas, são suas imagens apenas: “assim é, se lhe parece”. As coisas são e estão à medida que são puras manifestações visíveis, e quanto maior a visibilidade, maior o suposto grau de realidade. Não sem motivo, nos mais diversos setores e espaços sociais, todos, de modo beligerante, buscam sempre visibilidade. Por conseguinte, a ostentação nada mais é que a visibilidade hiperbólica, extremada e violenta: a imagem que se coloca no lugar das coias mesmas, para ser vista repetidamente, incessantemente, pelo maior número possível de sujeitos. Nisso está o mecanismo da selfie, que nem de longe pode ser explicita pela aproximação ao clássico elemento estético do auto-retrato.
Desse modo, é possível afirmar que em nosso horizonte cultural todas as coisas estão sujeitas a uma violência primeira: a violência da visibilidade, da imagem ostensiva, violência que possui como fonte o poder difuso do imagético hiperbólico. Uma visibilidade cujo escopo é apenas mais visibilidade. As imagens, toda aparição, toda manifestação que se queira ampla e visível é, portanto, potencialmente violenta, ainda que não seja esta a finalidade. Pois, tudo que se torna visível, encontra-se manifesto na forma da visibilidade do consumo, ou seja, como ostentação. Além das imagens não há mais um substrato concreto, um conteúdo, uma interioridade. Hoje não há nada além da imagem, agora o imagético é o princípio e o fim, o Alfa e Ômega. Tudo nasce sob o poder do imagético, nele permanece e morre, para tornar a nascer de novo, pois a ressurreição dos novos tempos tem por rito litúrgico: o remake. Tudo que se apresenta como cópia, tende a não desaparecer, uma vez que susceptível de se reproduzir infindavelmente, logo todo remake surge como imagem do ressuscitado, como signo de vitória ante a caducidade, a morte e o desaparecimento. A cópia e a repetição assim, não apenas prometem, mas garantem a própria vida eterna. Por consequência, o cristianismo ostentação nada mais é que o remake, a cópia da cópia, a repetição da perversa ordem que prevalece, a adequação cínica, posto que assumidamente sem subterfúgios, ao status quo da repetição e da cópia como novos supostos liames sociais. Apenas se repete sob o signo do “sacro”, aquilo que é feito no campo do “profano”. Portanto, o imagético desaloja o campo do onírico, do verossímil, do simbólico, do prazeroso-passional, apresentando-se como o próprio campo estético por excelência, corroendo a diferença entre sujeito e objeto.
A trágica relação dinâmica entre ostentar e consumir perverteu-se de tal modo, que não é mais possível diferenciar os dois. Um sustenta o outro: toda ato de ostentação na atualidade é um ato consumista, e, por sua vez, todo consumismo é feito para ser ostentado. Alcançando âmbitos impensáveis, a própria existência pessoal só é reconhecida atualmente, se inserida em ritos de consumo. A identidade é formada pelo consumir, mas todo consumir é ostentar, e todo ostentar é visibilidade exagerada e violenta. Logo, nascem subjetividades que na própria formação de seus princípios de identidade são assumidamente violentas, egoístas, narcísicas e insensíveis. Não reconhece nada que lhes seja outro, que não esteja sob a forma única e mesma da ostentação
Assim, nem objetividade, nem subjetividade, nem dentro, nem fora, sem verticalidades: há apenas as horizontalidades das aparências e das imagens. Se todo “cristão” é um apóstata em potencial, em virtude da ordem econômica perversa na qual se insere, também é atrativamente convidado a ser mais um sociopata da imagem, uma vez que é convidado a reproduzir, cinicamente ou “inocentemente”, a visibilidade ostensiva. Sociopatas da imagem são aqueles que não conseguem existir sem tornar maximamente visível a própria existência. Esta em um modo muito próprio de sentir, pois se trata de um sentir patológico, é apenas uma imagem: “ser é ser percebido”. Portanto, para o sociopata da imagem tudo está reduzido à visibilidade. Porém, não se trata de uma visibilidade qualquer, mas sim de uma visibilidade extremada. Quanto mais cresce o alcance das redes sociais, desaparecendo os espaços coletivos concretos de convivência, maior o número de sociopatas da imagem. Pois, a lógica da ostentação tem como hábitat natural as redes sociais e os mass medias. Todos querem tomar parte no espetáculo, nem que lhe caiba o papel de figuração ou do ridículo, pois ficar de fora do espetáculo significa o fracasso social. Por conseguinte, a fim de evitar o fracasso, a maior parte do cristianismo ocidental resolveu unir fé e ostentação.
Na lógica da ostentação são consideradas reais, depositárias de crédito e afetividade as coisas que fazem sucesso, porém, cumpre lembrar, este último só é alcançado com visibilidade, ou seja, com ostentação. Ora, para não perder espaço, o cristianismo ocidental, em seus mais diversos credos, não viu outra saída para sobreviver, ante o avanço da secularização, senão adequar-se à ostentação imperante. Estranha saída esta, que o cristianismo ocidental adotou: usar as formas mais avançadas da secularização para barrar a secularização, usar as formas mais avançadas do “profano” para comunicar o “sagrado”. Assumindo esta alternativa, não basta ser cristão, é preciso apresentar uma imagem condizente com o credo. Não só isso, é preciso atrair a maior visibilidade possível, logo é preciso ostentar a imagem que se quer incessantemente visível. Porém, como afirmado anteriormente, toda imagem na atualidade é potencialmente violenta, logo o cristão que aderiu à lógica da ostentação, é, por princípio violento, e uma vez submetido à ostentação, torna-se um fundamentalista inveterado, pois traz para o reino do imagético algo que lhe é estranho: a afirmação da posse do verdadeiro, o monopólio da verdade. Ou seja, o caráter de Ser que não se coaduna com o caráter de pura Aparência do imagético. Apresenta-se, pois, no caso do cristianismo ostentação uma tensão no âmbito do reino do imagético. Uma tensão já bastante discutida na tradição cultural do ocidente: a tensão entre Ser e Aparecer, Essência e Aparência, entre a realidade das coisas e suas respectivas imagens.
Adequado á ostentação, o homem religioso cristão ocidental não quer se desfazer de suas “verdades”, daquilo que para ele constitui o seu ser mais essencial. Porém, no reino das imagens, da pura aparência, noções como verdade e essência inexistem, perderam sentido de realidade, posto que: “assim é, se lhe parece”. Na visibilidade ostensiva midiática não são possíveis sinceros e honestos anúncios de verdade, promessas de um Reino divino, profecias ou messianismos. Não há nem messias, nem imagens de messias, pois a própria imagem, o imagético é o Messias. A imagem é o messias, posto que se instaurou um novo reino, uma nova ordem, onde não há mais disputas. Só há disputas e embates mortais onde se acredita estar de posse da verdade, e na posse da verdade não há lugar para aparências, ou se é ou não é. Todavia, no reino do imagético, no império da pura aparência não se disputa sobre a veracidade ou falsidade de algo, não se trata de ser ou não ser, mas apenas de aparecer. Não importa os desnudamentos de verdades essências, importa somente a circulação das imagens, e as imagens não arrogam para si nem veracidade, nem falsidade, pedem apenas visibilidade extremada,
ou seja, ostentação. Quanto mais imagens circulam, maior a visibilidade, quanto maior a visibilidade, maior o sucesso, e fazendo sucesso, se permanece. Ora, mais o que importa não é justamente permanecer, perdurar, alocar-se na duração da visibilidade? Não é esta, pois, a lógica inerente ao cristianismo ostentação? Quanto mais visível, quanto mais obedecer à paranoia da imagética hiperbólica, mais o credo assumido se fortalece: eis a lógica do cristianismo ostentação. Assim, a máxima de nosso tempo se estabelece sobre uma religiosidade completamente derrotada pela ordem prevalente. Ante a derrota, para evitar uma exposição ao ridículo, parece não haver outra opção. Resta apenas reproduzir, copiar, fazer remakes, seguir o modus operandi do “vencedor”. Contudo, tal completa adequação ao status quo não significa o desaparecimento da tensão apontada anteriormente. Não se pode viver arrogando-se o monopólio da verdade, assumindo o caráter de ser, no reino onde domina o imagético, o puro aparecer, a visibilidade ostensiva quem não se quer nem verdadeira, nem falsa, não se arroga portadora de nenhuma verdade ou parâmetro moral: o que importa é aparecer. Desse modo, ou se recusa o primado do ser sob o aparecer, ou não se entra completamente no reino do imagético. A porta para entrar no reino do imagético é larga, todos podem entrar, mas se pede um assentimento total. Tal reino pede de seus súditos apenas o puro parecer, ou seja, nada de se arrogar estatuto de verdade ou realidade.
Por isso, resta apenas uma indagação apelativa: Cristão, o que vais ostentar na continuidade, quando a tensão entre a ostentação e o teu credo se tornar mortalmente patente? Irás ostentar a própria morte da singularidade da mensagem outrora proclamada? Se assim for, inicia as exéquias, sem perder de vista que hoje até mesmo a morte pode ser ostentada. Sem perder de vista também que a nova ordem ao qual tu te adéquas oferece um tipo de ressurreição: aquela por meio das cópias, através do rito do remake. Contudo, uma vez aceitando-se a vida eterna da cópia, torna-te um apóstata completo da tua fé, e não mais apenas potencialmente, pois perde sentido toda busca por um cristianismo autêntico. Posto que, da autenticidade, daquilo que se impõem como integralmente original não resta espaço para cópias. Por fim, lembra-te que nos teus evangelhos é manifesto que não poderás servir a dois senhores. Escolhe, pois: ou o cristo Midiático, ou o Cristo dos Evangelhos. Não poderás permanecer para sempre sob a forma do Cristianismo Ostentação: ou se cristianiza, ou se ostenta. A manutenção dos dois significa a renuncia da própria fé. Mais que isso, Cristianismo ostentação não éAssim, nem objetividade, nem subjetividade, nem dentro, nem fora, sem verticalidades: há apenas as horizontalidades das aparências e das imagens. Se todo “cristão” é um apóstata em potencial, em virtude da ordem econômica perversa na qual se insere, também é atrativamente convidado a ser mais um sociopata da imagem, uma vez que é convidado a reproduzir, cinicamente ou “inocentemente”, a visibilidade ostensiva. Sociopatas da imagem são aqueles que não conseguem existir sem tornar maximamente visível a própria existência. Esta em um modo muito próprio de sentir, pois se trata de um sentir patológico, é apenas uma imagem: “ser é ser percebido”. Portanto, para o sociopata da imagem tudo está reduzido à visibilidade. Porém, não se trata de uma visibilidade qualquer, mas sim de uma visibilidade extremada. Quanto mais cresce o alcance das redes sociais, desaparecendo os espaços coletivos concretos de convivência, maior o número de sociopatas da imagem. Pois, a lógica da ostentação tem como hábitat natural as redes sociais e os mass medias. Todos querem tomar parte no espetáculo, nem que lhe caiba o papel de figuração ou do ridículo, pois ficar de fora do espetáculo significa o fracasso social. Por conseguinte, a fim de evitar o fracasso, a maior parte do cristianismo ocidental resolveu unir fé e ostentação.
Na lógica da ostentação são consideradas reais, depositárias de crédito e afetividade as coisas que fazem sucesso, porém, cumpre lembrar, este último só é alcançado com visibilidade, ou seja, com ostentação. Ora, para não perder espaço, o cristianismo ocidental, em seus mais diversos credos, não viu outra saída para sobreviver, ante o avanço da secularização, senão adequar-se à ostentação imperante. Estranha saída esta, que o cristianismo ocidental adotou: usar as formas mais avançadas da secularização para barrar a secularização, usar as formas mais avançadas do “profano” para comunicar o “sagrado”. Assumindo esta alternativa, não basta ser cristão, é preciso apresentar uma imagem condizente com o credo. Não só isso, é preciso atrair a maior visibilidade possível, logo é preciso ostentar a imagem que se quer incessantemente visível. Porém, como afirmado anteriormente, toda imagem na atualidade é potencialmente violenta, logo o cristão que aderiu à lógica da ostentação, é, por princípio violento, e uma vez submetido à ostentação, torna-se um fundamentalista inveterado, pois traz para o reino do imagético algo que lhe é estranho: a afirmação da posse do verdadeiro, o monopólio da verdade. Ou seja, o caráter de Ser que não se coaduna com o caráter de pura Aparência do imagético. Apresenta-se, pois, no caso do cristianismo ostentação uma tensão no âmbito do reino do imagético. Uma tensão já bastante discutida na tradição cultural do ocidente: a tensão entre Ser e Aparecer, Essência e Aparência, entre a realidade das coisas e suas respectivas imagens.
Adequado á ostentação, o homem religioso cristão ocidental não quer se desfazer de suas “verdades”, daquilo que para ele constitui o seu ser mais essencial. Porém, no reino das imagens, da pura aparência, noções como verdade e essência inexistem, perderam sentido de realidade, posto que: “assim é, se lhe parece”. Na visibilidade ostensiva midiática não são possíveis sinceros e honestos anúncios de verdade, promessas de um Reino divino, profecias ou messianismos. Não há nem messias, nem imagens de messias, pois a própria imagem, o imagético é o Messias. A imagem é o messias, posto que se instaurou um novo reino, uma nova ordem, onde não há mais disputas. Só há disputas e embates mortais onde se acredita estar de posse da verdade, e na posse da verdade não há lugar para aparências, ou se é ou não é. Todavia, no reino do imagético, no império da pura aparência não se disputa sobre a veracidade ou falsidade de algo, não se trata de ser ou não ser, mas apenas de aparecer. Não importa os desnudamentos de verdades essências, importa somente a circulação das imagens, e as imagens não arrogam para si nem veracidade, nem falsidade, pedem apenas visibilidade extremada,
ou seja, ostentação. Quanto mais imagens circulam, maior a visibilidade, quanto maior a visibilidade, maior o sucesso, e fazendo sucesso, se permanece. Ora, mais o que importa não é justamente permanecer, perdurar, alocar-se na duração da visibilidade? Não é esta, pois, a lógica inerente ao cristianismo ostentação? Quanto mais visível, quanto mais obedecer à paranoia da imagética hiperbólica, mais o credo assumido se fortalece: eis a lógica do cristianismo ostentação. Assim, a máxima de nosso tempo se estabelece sobre uma religiosidade completamente derrotada pela ordem prevalente. Ante a derrota, para evitar uma exposição ao ridículo, parece não haver outra opção. Resta apenas reproduzir, copiar, fazer remakes, seguir o modus operandi do “vencedor”. Contudo, tal completa adequação ao status quo não significa o desaparecimento da tensão apontada anteriormente. Não se pode viver arrogando-se o monopólio da verdade, assumindo o caráter de ser, no reino onde domina o imagético, o puro aparecer, a visibilidade ostensiva quem não se quer nem verdadeira, nem falsa, não se arroga portadora de nenhuma verdade ou parâmetro moral: o que importa é aparecer. Desse modo, ou se recusa o primado do ser sob o aparecer, ou não se entra completamente no reino do imagético. A porta para entrar no reino do imagético é larga, todos podem entrar, mas se pede um assentimento total. Tal reino pede de seus súditos apenas o puro parecer, ou seja, nada de se arrogar estatuto de verdade ou realidade.
Por isso, resta apenas uma indagação apelativa: Cristão, o que vais ostentar na continuidade, quando a tensão entre a ostentação e o teu credo se tornar mortalmente patente? Irás ostentar a própria morte da singularidade da mensagem outrora proclamada? Se assim for, inicia as exéquias, sem perder de vista que hoje até mesmo a morte pode ser ostentada. Sem perder de vista também que a nova ordem ao qual tu te adéquas oferece um tipo de ressurreição: aquela por meio das cópias, através do rito do remake. Contudo, uma vez aceitando-se a vida eterna da cópia, torna-te um apóstata completo da tua fé, e não mais apenas potencialmente, pois perde sentido toda busca por um cristianismo autêntico. Posto que, da autenticidade, daquilo que se impõem como integralmente original não resta espaço para cópias. Por fim, lembra-te que nos teus evangelhos é manifesto que não poderás servir a dois senhores. Escolhe, pois: ou o cristo Midiático, ou o Cristo dos Evangelhos. Não poderás permanecer para sempre sob a forma do Cristianismo Ostentação: ou se cristianiza, ou se ostenta. A manutenção dos dois significa a renuncia da própria fé. Mais que isso, Cristianismo ostentação não éAssim, nem objetividade, nem subjetividade, nem dentro, nem fora, sem verticalidades: há apenas as horizontalidades das aparências e das imagens. Se todo “cristão” é um apóstata em potencial, em virtude da ordem econômica perversa na qual se insere, também é atrativamente convidado a ser mais um sociopata da imagem, uma vez que é convidado a reproduzir, cinicamente ou “inocentemente”, a visibilidade ostensiva. Sociopatas da imagem são aqueles que não conseguem existir sem tornar maximamente visível a própria existência. Esta em um modo muito próprio de sentir, pois se trata de um sentir patológico, é apenas uma imagem: “ser é ser percebido”. Portanto, para o sociopata da imagem tudo está reduzido à visibilidade. Porém, não se trata de uma visibilidade qualquer, mas sim de uma visibilidade extremada. Quanto mais cresce o alcance das redes sociais, desaparecendo os espaços coletivos concretos de convivência, maior o número de sociopatas da imagem. Pois, a lógica da ostentação tem como hábitat natural as redes sociais e os mass medias. Todos querem tomar parte no espetáculo, nem que lhe caiba o papel de figuração ou do ridículo, pois ficar de fora do espetáculo significa o fracasso social. Por conseguinte, a fim de evitar o fracasso, a maior parte do cristianismo ocidental resolveu unir fé e ostentação.
Na lógica da ostentação são consideradas reais, depositárias de crédito e afetividade as coisas que fazem sucesso, porém, cumpre lembrar, este último só é alcançado com visibilidade, ou seja, com ostentação. Ora, para não perder espaço, o cristianismo ocidental, em seus mais diversos credos, não viu outra saída para sobreviver, ante o avanço da secularização, senão adequar-se à ostentação imperante. Estranha saída esta, que o cristianismo ocidental adotou: usar as formas mais avançadas da secularização para barrar a secularização, usar as formas mais avançadas do “profano” para comunicar o “sagrado”. Assumindo esta alternativa, não basta ser cristão, é preciso apresentar uma imagem condizente com o credo. Não só isso, é preciso atrair a maior visibilidade possível, logo é preciso ostentar a imagem que se quer incessantemente visível. Porém, como afirmado anteriormente, toda imagem na atualidade é potencialmente violenta, logo o cristão que aderiu à lógica da ostentação, é, por princípio violento, e uma vez submetido à ostentação, torna-se um fundamentalista inveterado, pois traz para o reino do imagético algo que lhe é estranho: a afirmação da posse do verdadeiro, o monopólio da verdade. Ou seja, o caráter de Ser que não se coaduna com o caráter de pura Aparência do imagético. Apresenta-se, pois, no caso do cristianismo ostentação uma tensão no âmbito do reino do imagético. Uma tensão já bastante discutida na tradição cultural do ocidente: a tensão entre Ser e Aparecer, Essência e Aparência, entre a realidade das coisas e suas respectivas imagens.
Adequado á ostentação, o homem religioso cristão ocidental não quer se desfazer de suas “verdades”, daquilo que para ele constitui o seu ser mais essencial. Porém, no reino das imagens, da pura aparência, noções como verdade e essência inexistem, perderam sentido de realidade, posto que: “assim é, se lhe parece”. Na visibilidade ostensiva midiática não são possíveis sinceros e honestos anúncios de verdade, promessas de um Reino divino, profecias ou messianismos. Não há nem messias, nem imagens de messias, pois a própria imagem, o imagético é o Messias. A imagem é o messias, posto que se instaurou um novo reino, uma nova ordem, onde não há mais disputas. Só há disputas e embates mortais onde se acredita estar de posse da verdade, e na posse da verdade não há lugar para aparências, ou se é ou não é. Todavia, no reino do imagético, no império da pura aparência não se disputa sobre a veracidade ou falsidade de algo, não se trata de ser ou não ser, mas apenas de aparecer. Não importa os desnudamentos de verdades essências, importa somente a circulação das imagens, e as imagens não arrogam para si nem veracidade, nem falsidade, pedem apenas visibilidade extremada,
ou seja, ostentação. Quanto mais imagens circulam, maior a visibilidade, quanto maior a visibilidade, maior o sucesso, e fazendo sucesso, se permanece. Ora, mais o que importa não é justamente permanecer, perdurar, alocar-se na duração da visibilidade? Não é esta, pois, a lógica inerente ao cristianismo ostentação? Quanto mais visível, quanto mais obedecer à paranoia da imagética hiperbólica, mais o credo assumido se fortalece: eis a lógica do cristianismo ostentação. Assim, a máxima de nosso tempo se estabelece sobre uma religiosidade completamente derrotada pela ordem prevalente. Ante a derrota, para evitar uma exposição ao ridículo, parece não haver outra opção. Resta apenas reproduzir, copiar, fazer remakes, seguir o modus operandi do “vencedor”. Contudo, tal completa adequação ao status quo não significa o desaparecimento da tensão apontada anteriormente. Não se pode viver arrogando-se o monopólio da verdade, assumindo o caráter de ser, no reino onde domina o imagético, o puro aparecer, a visibilidade ostensiva quem não se quer nem verdadeira, nem falsa, não se arroga portadora de nenhuma verdade ou parâmetro moral: o que importa é aparecer. Desse modo, ou se recusa o primado do ser sob o aparecer, ou não se entra completamente no reino do imagético. A porta para entrar no reino do imagético é larga, todos podem entrar, mas se pede um assentimento total. Tal reino pede de seus súditos apenas o puro parecer, ou seja, nada de se arrogar estatuto de verdade ou realidade.
Por isso, resta apenas uma indagação apelativa: Cristão, o que vais ostentar na continuidade, quando a tensão entre a ostentação e o teu credo se tornar mortalmente patente? Irás ostentar a própria morte da singularidade da mensagem outrora proclamada? Se assim for, inicia as exéquias, sem perder de vista que hoje até mesmo a morte pode ser ostentada. Sem perder de vista também que a nova ordem ao qual tu te adéquas oferece um tipo de ressurreição: aquela por meio das cópias, através do rito do remake. Contudo, uma vez aceitando-se a vida eterna da cópia, torna-te um apóstata completo da tua fé, e não mais apenas potencialmente, pois perde sentido toda busca por um cristianismo autêntico. Posto que, da autenticidade, daquilo que se impõem como integralmente original não resta espaço para cópias. Por fim, lembra-te que nos teus evangelhos é manifesto que não poderás servir a dois senhores. Escolhe, pois: ou o cristo Midiático, ou o Cristo dos Evangelhos. Não poderás permanecer para sempre sob a forma do Cristianismo Ostentação: ou se cristianiza, ou se ostenta. A manutenção dos dois significa a renuncia da própria fé. Mais que isso, Cristianismo ostentação não éAssim, nem objetividade, nem subjetividade, nem dentro, nem fora, sem verticalidades: há apenas as horizontalidades das aparências e das imagens. Se todo “cristão” é um apóstata em potencial, em virtude da ordem econômica perversa na qual se insere, também é atrativamente convidado a ser mais um sociopata da imagem, uma vez que é convidado a reproduzir, cinicamente ou “inocentemente”, a visibilidade ostensiva. Sociopatas da imagem são aqueles que não conseguem existir sem tornar maximamente visível a própria existência. Esta em um modo muito próprio de sentir, pois se trata de um sentir patológico, é apenas uma imagem: “ser é ser percebido”. Portanto, para o sociopata da imagem tudo está reduzido à visibilidade. Porém, não se trata de uma visibilidade qualquer, mas sim de uma visibilidade extremada. Quanto mais cresce o alcance das redes sociais, desaparecendo os espaços coletivos concretos de convivência, maior o número de sociopatas da imagem. Pois, a lógica da ostentação tem como hábitat natural as redes sociais e os mass medias. Todos querem tomar parte no espetáculo, nem que lhe caiba o papel de figuração ou do ridículo, pois ficar de fora do espetáculo significa o fracasso social. Por conseguinte, a fim de evitar o fracasso, a maior parte do cristianismo ocidental resolveu unir fé e ostentação.
Na lógica da ostentação são consideradas reais, depositárias de crédito e afetividade as coisas que fazem sucesso, porém, cumpre lembrar, este último só é alcançado com visibilidade, ou seja, com ostentação. Ora, para não perder espaço, o cristianismo ocidental, em seus mais diversos credos, não viu outra saída para sobreviver, ante o avanço da secularização, senão adequar-se à ostentação imperante. Estranha saída esta, que o cristianismo ocidental adotou: usar as formas mais avançadas da secularização para barrar a secularização, usar as formas mais avançadas do “profano” para comunicar o “sagrado”. Assumindo esta alternativa, não basta ser cristão, é preciso apresentar uma imagem condizente com o credo. Não só isso, é preciso atrair a maior visibilidade possível, logo é preciso ostentar a imagem que se quer incessantemente visível. Porém, como afirmado anteriormente, toda imagem na atualidade é potencialmente violenta, logo o cristão que aderiu à lógica da ostentação, é, por princípio violento, e uma vez submetido à ostentação, torna-se um fundamentalista inveterado, pois traz para o reino do imagético algo que lhe é estranho: a afirmação da posse do verdadeiro, o monopólio da verdade. Ou seja, o caráter de Ser que não se coaduna com o caráter de pura Aparência do imagético. Apresenta-se, pois, no caso do cristianismo ostentação uma tensão no âmbito do reino do imagético. Uma tensão já bastante discutida na tradição cultural do ocidente: a tensão entre Ser e Aparecer, Essência e Aparência, entre a realidade das coisas e suas respectivas imagens.
Adequado á ostentação, o homem religioso cristão ocidental não quer se desfazer de suas “verdades”, daquilo que para ele constitui o seu ser mais essencial. Porém, no reino das imagens, da pura aparência, noções como verdade e essência inexistem, perderam sentido de realidade, posto que: “assim é, se lhe parece”. Na visibilidade ostensiva midiática não são possíveis sinceros e honestos anúncios de verdade, promessas de um Reino divino, profecias ou messianismos. Não há nem messias, nem imagens de messias, pois a própria imagem, o imagético é o Messias. A imagem é o messias, posto que se instaurou um novo reino, uma nova ordem, onde não há mais disputas. Só há disputas e embates mortais onde se acredita estar de posse da verdade, e na posse da verdade não há lugar para aparências, ou se é ou não é. Todavia, no reino do imagético, no império da pura aparência não se disputa sobre a veracidade ou falsidade de algo, não se trata de ser ou não ser, mas apenas de aparecer. Não importa os desnudamentos de verdades essências, importa somente a circulação das imagens, e as imagens não arrogam para si nem veracidade, nem falsidade, pedem apenas visibilidade extremada,
ou seja, ostentação. Quanto mais imagens circulam, maior a visibilidade, quanto maior a visibilidade, maior o sucesso, e fazendo sucesso, se permanece. Ora, mais o que importa não é justamente permanecer, perdurar, alocar-se na duração da visibilidade? Não é esta, pois, a lógica inerente ao cristianismo ostentação? Quanto mais visível, quanto mais obedecer à paranoia da imagética hiperbólica, mais o credo assumido se fortalece: eis a lógica do cristianismo ostentação. Assim, a máxima de nosso tempo se estabelece sobre uma religiosidade completamente derrotada pela ordem prevalente. Ante a derrota, para evitar uma exposição ao ridículo, parece não haver outra opção. Resta apenas reproduzir, copiar, fazer remakes, seguir o modus operandi do “vencedor”. Contudo, tal completa adequação ao status quo não significa o desaparecimento da tensão apontada anteriormente. Não se pode viver arrogando-se o monopólio da verdade, assumindo o caráter de ser, no reino onde domina o imagético, o puro aparecer, a visibilidade ostensiva quem não se quer nem verdadeira, nem falsa, não se arroga portadora de nenhuma verdade ou parâmetro moral: o que importa é aparecer. Desse modo, ou se recusa o primado do ser sob o aparecer, ou não se entra completamente no reino do imagético. A porta para entrar no reino do imagético é larga, todos podem entrar, mas se pede um assentimento total. Tal reino pede de seus súditos apenas o puro parecer, ou seja, nada de se arrogar estatuto de verdade ou realidade.
Por isso, resta apenas uma indagação apelativa: Cristão, o que vais ostentar na continuidade, quando a tensão entre a ostentação e o teu credo se tornar mortalmente patente? Irás ostentar a própria morte da singularidade da mensagem outrora proclamada? Se assim for, inicia as exéquias, sem perder de vista que hoje até mesmo a morte pode ser ostentada. Sem perder de vista também que a nova ordem ao qual tu te adéquas oferece um tipo de ressurreição: aquela por meio das cópias, através do rito do remake. Contudo, uma vez aceitando-se a vida eterna da cópia, torna-te um apóstata completo da tua fé, e não mais apenas potencialmente, pois perde sentido toda busca por um cristianismo autêntico. Posto que, da autenticidade, daquilo que se impõem como integralmente original não resta espaço para cópias. Por fim, lembra-te que nos teus evangelhos é manifesto que não poderás servir a dois senhores. Escolhe, pois: ou o cristo Midiático, ou o Cristo dos Evangelhos. Não poderás permanecer para sempre sob a forma do Cristianismo Ostentação: ou se cristianiza, ou se ostenta. A manutenção dos dois significa a renuncia da própria fé. Mais que isso, Cristianismo ostentação não é uma morte qualquer, mas um suicídio cínico da própria fé.


Fran Alavina.

terça-feira, 6 de maio de 2014

A ONIPOTÊNCIA E A DEBILIDADE DE DEUS NA TEOLOGIA DE BONHOEFFER.

“Para Bonhoeffer não existe o deus ex-machina que, de uma hora para a outra, inverte as coisas. O ser humano secularizado precisa assumir o seu papel no mundo ‘etsi deus non daretur’ (como se deus não existisse). Cabe aos cristãos apontar rumos éticos de convivência e partilha”, afirma o pastor luterano e professor de teologia. No dia 9 de abril de 1945, morre o teólogo e pastor luterano Dietrich Bonhoeffer. Enforcado em um campo de concentração ao lado de seus familiares semanas antes do fim da 2ª Guerra Mundial, o pensador alemão é considerado um dos poucos teólogos mártires do cristianismo. O fato explica-se considerando que a academia, muitas vezes, encerra-se em discussões herméticas. Por sua vez, Bonhoeffer, como aponta Harald Malschitzky “se perguntava pela relação entre fé e vida como ela é e acontece, fato tantas vezes ignorado na teologia acadêmica”.
Malschitzky, autor de um livro sobre o teólogo alemão, relata um breve histórico da vida de Bonhoeffer, sua resistência à Hitler e à sua luta contra a nazificação da igreja. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-line, ele relata como o teólogo insistiu na defesa dos judeus, envolvendo-se até mesmo na emigração clandestina.
“A igreja não pode se limitar a cuidar de feridos e enterrar mortos”, expõe Malschitzky. “Para Bonhoeffer não existe o deus ex-machina que, de uma hora para a outra, inverte as coisas”. Com parentes e amigos no estado maior do exército alemão, o teólogo infiltrou-se em um grupo para promover a derrubada de Hitler. Suas ações, obviamente não passaram despercebidas ao governo alemão, o que levou, por fim, à sua prisão.
É no cárcere que o teólogo desenvolve boa parte de sua produção mais relevante, articulando momentos de desesperança com o terror vivido com a fé. O pensamento do alemão é uma resposta a uma grande inquietação teológica: como um Deus bondoso pode permitir o sofrimento de seus filhos? Ou ainda, como aquele que é todo-poderoso pode permitir a existência do mal?
Bonhoeffer defendia que deveríamos viver no mundo como se Deus não existisse. Não era uma forma de negar o divino, mas de assumir os destinos do mundo sob nossa própria responsabilidade. Em uma teologia cristocêntrica, onde a cruz tem grande
importância simbólica, sustenta: “Cristo nos ajuda não por sua onipotência, mas sim por sua debilidade e sofrimentos”. Harald Malschitzky, 74 anos, é pastor e professor aposentado da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB, e foi orientador de estudos na Escola Superior de Teologia – EST, em São Leopoldo. É autor de Dietrich Bonhoeffer - Discípulo, testemunha, mártir (São Leopoldo: Sinodal, 2005).
Confira a entrevista
IHU On-Line – Bonhoeffer é considerado um dos poucos teólogos (acadêmicos) mártires no cristianismo. O que o levou a tal engajamento, que findou em sua execução por enforcamento nas mãos dos nazistas?
Harald Malschitzky - Em uma igreja ortodoxa na cidade de Nürnberg (Alemanha), Bonhoeffer figura entre os ícones ortodoxos. É reconhecido como mártir para além da igreja. Sua trajetória tem diversas raízes. Ele viveu num momento em que um bom segmento da teologia (principalmente protestantes, mas não só) se perguntava pela relação entre fé e vida como ela é e acontece, fato tantas vezes ignorado na teologia acadêmica.
A teologia de Bonhoeffer era radicalmente cristocêntrica. Daí vinha a pergunta pelo significado e papel do Cristo na vida. Sua conclusão: O cristão coloca sua vida a serviço dos outros e a igreja só tem razão de ser se ela está aí para os outros. Ela não tem um fim em si mesma. Outra raiz tem a ver com sua atuação em outros países e em seu engajamento ecumênico.
Em 1930 ele fez um intercâmbio com um seminário em Nova York, a partir do qual conheceria as comunidades negras (em tempo de segregação racial), que passaria a frequentar. O canto alegre, os testemunhos, mas principalmente a ligação da fé com a realidade e a esperança de novos tempos aqui e agora, causaram tanto impacto, que o próprio Bonhoeffer classifica o tempo como uma espécie de conversão. Na mesma época, a Alemanha via a ascensão de Hitler. O parágrafo do arianismo era aplicado também na igreja (pastores e padres de ascendência judia deveriam ser demitidos), a tomada da igreja pelos teuto-cristãos (Deutsche Christen) já se avizinhava, o cerceamento e perseguição aos judeus era crescente.
De volta à Alemanha, já em 1933 ele refletia sobre o poder ilimitado de Hitler e os seus riscos. No mesmo ano ele se ocupou diversas vezes com a questão dos judeus. Envolveu-se na criação da Igreja Confessante, coordenou a formação clandestina de pastores, se empenhou no mundo ecumênico para que a igreja estatal alemã não fosse reconhecida, se empenhou em abrir os olhos de outros países para a tormenta no horizonte alemão.
Dentro desse cenário, um enorme empenho teológico cristalizava sempre mais o reconhecimento de que o empenho cristão pelo ser humano pode implicar ações
políticas radicais. Em relação à questão dos judeus, por exemplo, ele foi categórico: “Somente tem direito a cantar gregoriano aquele que defender os judeus”.
Ele mesmo se envolveu na emigração clandestina de um grupo de judeus. Em relação à loucura de Hitler, uma conclusão: A igreja não pode se limitar a cuidar de feridos e enterrar mortos. Era preciso arrancar do volante do carro aquele que machuca e mata. Com parentes e amigos no estado maior do exército alemão, ele se infiltrou nesse grupo para promover a derrubada de Hitler.
Ele era uma espécie de agente da causa no mundo ecumênico. É claro que suas ações e seus passos eram vigiados. Sucessivamente foram cassados os seus campos de atuação na universidade, a publicação de seus livros, o seminário clandestino de Finkelwalde (que seria reaberto na Pomerânia). Em 1943 ele foi preso, passou por algumas prisões e campos de concentração até que, em 9 de abril de 1945, foi executado, com outras pessoas do grupo, em Flossenbürg, no sul da Alemanha.
IHU On-Line – Que teologia Bonhoeffer desenvolveu a partir da sua vivência nos campos de concentração? Que entendimento ele teve de Deus diante dos horrores que envolveram o nazismo?
Harald Malschitzky - É interessante que Bonhoeffer não desenvolveu uma teologia específica na prisão. As centenas de cartas (publicadas em Resistência e Submissão) revelam uma enorme confiança em Deus e a clareza de que cristãos e igreja só têm razão de existir em função dos outros. Parte de sua Ética, por exemplo, publicada de forma fragmentada, foi escrita na prisão, assim como alocuções de casamento e batismo, textos que expressam uma tremenda confiança em Deus.
Orações escritas para outros prisioneiros dão conta de uma fé enorme em um Deus que cuida de sua criatura. Não que não houvesse também dúvidas e questionamentos. A poesia Quem sou eu expressa bem as duas coisas. Uma oração escrita para outros presos mostra como convivem a fraqueza e a certeza da ajuda de Deus:
Dentro de mim está escuro, mas em ti há luz/
eu estou só, mas tu não me abandonas/
eu estou desanimado, mas em ti há auxílio/eu estou inquieto, mas em ti há paz/
em mim há amargura, mas em ti há paciência/
não entendo os teus caminhos, mas tu conheces o caminho certo para mim.
(Escrita em novembro de 1943). Para Bonhoeffer não existe o deus ex-machina que, de uma hora para a outra, inverte as coisas. O ser humano secularizado precisa assumir o seu papel no mundo etsi deus non daretur (como se deus não existisse). Cabe aos cristãos apontar rumos éticos de convivência e partilha. Aqui uma razão a mais para a decisão pessoal e radical de Bonhoeffer como cristão.
É ilustrativo que nos campos de concentração ele passava muito tempo conversando com funcionários e guardas que o vigiavam, porque, antes de tudo, eram criaturas amadas por Deus e muitos sofriam com o que acontecia. Os horrores do nazismo (e
outros tantos) precisam ser debitados na conta do ser humano que se brutaliza e se deixa brutalizar. Humanamente, é quase inconcebível que isso aconteça. Hannah Arendt se dedicou com afinco à reflexão e ao estudo da brutalidade, à banalização do mal, justamente a partir do genocídio levado a cabo pelo regime nazista e de forma especial tendo assistido ao julgamento de Adolf Eichmann.
IHU On-Line – Como se deu a divisão do posicionamento do protestantismo frente à ascensão do nazismo? Qual a importância da Igreja Confessante nesta conjuntura?
Harald Malschitzky - Um grande número de leigos e pastores na igreja evangélica se identificava com o nacional-socialismo. Esses “teuto-cristãos” ou “cristãos alemães” concordavam com as medidas de Hitler com base no parágrafo ariano extensivas à igreja. Uma eleição convocada em última hora, em 1933, deveria eleger um bispo identificado com o nazismo. Bonhoeffer e outros se empenharam, por meio de uma forte panfletagem, em favor de outro candidato; 70% dos votantes escolheram o candidato da situação, Ludwig Müller. Em seguida Bonhoeffer e seu grupo elaboraram um documento que se tornou conhecido como Confissão de Bethel, que seria a base para a “Confissão de Barmen”, base da Igreja Confessante. Nesse período Bonhoeffer aceitou o convite para trabalhar por um período em uma comunidade em Londres, mas acompanhava atentamente o desenrolar dos acontecimentos em seu país e em sua igreja tanto por notícias como por visitas a Berlim. Não participou diretamente da elaboração da “Declaração de Barmen”, mas se identificou com seus propósitos.
De 29 a 31 de maio de 1934, se reuniu uma assembleia que, em seis pontos, condenou a doutrina dos teuto-cristãos, criando-se oficialmente a Igreja Confessante em oposição à igreja protestante que se identificava com o nazismo. O cerne da declaração e a base da Igreja Confessante estão traduzidos nas seguintes palavras da Confissão de Barmen:
“Condenamos à falsa doutrina segundo a qual a igreja pode e deve reconhecer como fonte de sua pregação, além e ao lado da única palavra de Deus, ainda outros acontecimentos e poderes, figuras ou verdades como se fossem revelações de Deus”.
No início a Igreja Confessante era tolerada, mas isso não duraria muito. No mundo ecumênico, Bonhoeffer se empenhou, logo em 1934, no sentido de que a Igreja Confessante fosse reconhecida como única representante legítima do protestantismo da Alemanha. O Conselho Mundial de Igrejas convidara representantes das duas igrejas para uma conferência na Dinamarca, em 1934.
Um desafio para a Igreja Confessante, logo de início, foi preparar pastores e pregadores para as comunidades. Eles vinham dos bancos da universidade, sem prática alguma. Foram criados cinco seminários de pregadores, ficando um deles, o da Pomerânia, sob orientação de Bonhoeffer. Ele funcionou primeiro em um lugar à beira do Mar Báltico e logo foi transferido para Finkenwalde. A Igreja Confessante sempre foi minoria, e não é preciso mencionar que ela e todos os seus passos foram sendo controlados, cerceados e finalmente proibidos. Muitos dos seus integrantes pararam em campos de concentração. Terminada a guerra, em outubro de 1945, cristãos que tinham suas raízes na Igreja Confessante elaboraram e publicaram a Confissão de Culpa de Stuttgart na qual eles assumem culpa, entre outros, por omissão diante do nazismo.
IHU On-Line – O teólogo defendia que deveríamos agir como que em um mundo sem Deus, mas não como forma de negar o divino. Como explicar este pensamento frente ao momento histórico vivido por Bonhoeffer?
Harald Malschitzky - Bonhoeffer achava que o processo de secularização radical iria às últimas consequências. Sua pergunta era como a igreja poderia falar e agir com o mundo secularizado, que não necessariamente negava a Deus, mas que assumia os destinos do mundo sob própria responsabilidade.
Um dos pontos-chave na agenda dessa humanidade secularizada deveria ser a paz, única forma de sobrevivência. O papel da igreja universal seria convocar para a paz. Em agosto de 1934, quando já estava claro que Hitler queria guerra, em uma convenção ecumênica na Dinamarca, Bonhoeffer diz: “Como se concretiza a paz? Quem convoca para a paz de forma tal que o mundo o ouça, seja obrigado a ouvir?
Somente o grande concílio ecumênico da santa igreja de Cristo de todo o planeta poderá fazê-lo de maneira que o mundo, rangendo os dentes, tenha que ouvir a palavra da paz, e os povos fiquem felizes, porque esta igreja de Cristo arrancará as armas das mãos de seus filhos em nome de Cristo, proibindo-lhes a guerra e proclamando a paz de Cristo a todo este mundo delirante”.
Não houve concílio, nem toda a sabedoria e capacidade diplomática e política do ser humano secularizado evitaram a guerra; boa parte de cristãos protestantes e católicos foram a favor da guerra. Todos tiveram que ver e sofrer a fúria do mal matando e destruindo indistintamente.
IHU On-Line – Como compreende, nesse sentido, a reação de Deus frente ao sofrimento de Seu Filho na cruz diante da morte, e como essa reação é também a reação de Deus diante do nosso sofrimento?
Harald Malschitzky - A Bíblia conhece momentos da ausência de Deus. O próprio Cristo sentiu esse abandono na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” Toda a questão do sofrimento vicário do próprio filho de Deus continua em discussão. Como Deus podia concordar com isso?
Bonhoeffer, mesmo não compreendendo o seu Deus, enxergava a sua bondosa mão também por detrás do sofrimento. Era sua fé, que o mesmo Deus acompanhava seus filhos e filhas em todos os momentos. Não vamos encontrar em Bonhoeffer a tentativa de explicar isso de forma racional e lógica. Eu pessoalmente confesso que tenho aqui todas as dificuldades. A ausência de Deus por vezes é angustiante. Continuo, porém, na busca de respostas.
IHU On-Line – “Cristo nos ajuda não por sua onipotência, mas sim por sua debilidade e sofrimentos”, afirma Bonhoeffer. De que forma reconhecer a existência de um Deus onipotente, ainda que “débil”, abre caminho para o livre arbítrio?
Harald Malschitzky - O ser humano não é marionete de Deus. Ele foi criado com liberdade e recebeu a incumbência de cuidar do mundo e da criação. Segundo o testemunho bíblico, Deus admoesta e procura indicar e corrigir o rumo da humanidade através de pessoas (pensemos na figura dos profetas).
O livre arbítrio (que não é tão livre assim) não me parece tão problemático, mas sim a arbitrariedade pura e simples praticada pelo nazismo, mas infelizmente não só por ele. O Cristo em sua debilidade acompanha as pessoas nas suas derrotas, dando força e ânimo para continuar, à revelia de tudo. Sua mensagem, vivida e sofrida é de paz e comunhão e de respeito justamente pelos seres mais debilitados. Sem dúvida, a debilidade tem seus riscos.
IHU On-Line – Como explicar, a partir do pensamento de Bonhoeffer, a atuação divina durante os tempos sombrios da Shoah? Como manter e defender a fé em Deus frente ao massacre de tantas pessoas?
Harald Malschitzky - Bonhoeffer não conheceu o conceito de Shoah, pois este seria aplicado ao genocídio impetrado pelo nazismo somente depois de terminada a guerra. Mas o que estava acontecendo não lhe era desconhecido. A Shoah sem dúvida mexe nos alicerces da fé de qualquer cristão e todos os grandes e pequenos programas de reparação promovidos por povos e igrejas não o mudam.
Acho que não se trata de defender a fé em Deus, mas de testemunhá-la para que se encontrem formas de paz duradoura para todos os povos e crenças (ou descrenças!). Este testemunho não nasce em uma fé heroica, mas da debilidade que se limita a dizer: “Senhor, eu creio, ajuda-me na minha falta de fé”.
IHU On-Line – Deseja acrescentar alguma coisa?
Harald Malschitzky - O martírio não era aspiração de Bonhoeffer, embora essa questão já tenha sido levantada. Verdade que ele, em certo momento na prisão, pensou no suicídio, mas não como ato de coragem, e sim porque tinha medo de não suportar as torturas e acabar traindo todo o movimento que queria tirar Hitler do poder. Nos EUA, Bonhoeffer conheceu um teólogo católico, Jean Lassere, pacifista decidido. Num dos diálogos Lassere teria manifestado que ele desejava ser santo. Bonhoeffer se limitou a dizer que seu desejo era “aprender a crer”.

terça-feira, 29 de abril de 2014

A EUCARISTIA E O LAICATO



Marcelo Barros

Esse título parece impróprio porque comumente a missa é associada aos padres e o laicato tinha como função apenas “assistir missas nos domingos e festas de guarda”. Entretanto, quando aprofundamos o sentido da eucaristia, descobrimos que todos os cristãos batizados são ou deveriam ser protagonistas importantes e mesmo celebrantes da missa. Toda a comunidade cristã é continuadora da comunidade dos discípulos reunidos na ceia, aos quais, segundo o Evangelho, Jesus disse:
“Tomai e comei, todos vós...” (sem distinção de ninguém).

No século IV, São João Crisóstomo, bispo de Constantinopla, comentava: “Há um caso em que não há distinção entre quem é padre e quem é leigo: é quando se trata de tomar parte nos santos mistérios. Todos somos julgados dignos dos mesmos privilégios. (...) Um mesmo corpo é oferecido a todos. Há um só cálice do qual todos bebem. Nas orações, qualquer pessoa que chega em nossas Igrejas pode ver o povo tomar parte na intercessão. Todos pronunciam a mesma oração (...) Todos formamos um só corpo. Só nos distinguimos como um membro do corpo pode diferenciar-se do outro. (...) É preciso sermos na Igreja como em uma única casa. Ser todos como um só corpo”[1].

De fato, segundo os estudiosos da Liturgia, os cultos cristãos dos primeiros séculos valorizavam imensamente o fato de que toda e qualquer pessoa, principalmente estranha ou estrangeira, era bem recebida na assembleia e dela participava ativamente. “Para os primeiros cristãos, o acolhimento do estrangeiro tinha uma dimensão teológica. Para eles, Igreja não é simplesmente um Credo, mas uma realidade viva, uma fraternidade aberta”[2]. Na liturgia dominical, os antigos cristãos superaram as divisões de classe do Império Romano. Ali todos eram iguais. A Igreja possibilitou que escravos acedessem a todas as funções ministeriais. Só para citar alguns casos, os papas Pio e Calixto foram escravos e se tornaram bispos de Roma. Um documento do século IV, a Didascália vê o lava-pés como o sacramento da diaconia e do diaconato na Igreja. (Didasc IX, 26).





Nomes e dimensões que a eucaristia tomou no decorrer da história:

1 – Ceia do Senhor
2 – Partilha ou fração do pão
3 – Eucaristia – ação de graças
4 – Missa
5 – Sacrifício do altar
6 – Presença real
7 – Sacramento da unidade e da comunhão
8 – Profecia de um mundo novo

Palavras de Santo Agostinho no século IV:
“Você quer compreender o que é o Corpo de Cristo? Escuta o apóstolo dizer aos fiéis: ‘Vocês são o corpo de Cristo e seus membros”. Se, portanto, são o Corpo do Cristo e seus membros, é o próprio símbolo de vocês que repousa sobre a mesa. Quando vocês recebem o pão na comunhão, devem responder “Amém” ao que vocês próprios são. Vocês é que são o corpo de Cristo. Responder Amém quer dizer: Assim seja. Esta resposta marca a adesão de vocês. Seja um membro do corpo do Cristo para que o seu amém seja verdadeiro. (...) O Apóstolo que nos declara: “Mesmo numerosos, somos um só corpo”. O pão não é formado de um só grão, mas de muitos. (...) Para dar ao pão uma aparência sensível, misturou-se na água grãos numerosos que formaram uma mesma massa, símbolo dos primeiros cristãos: “Eles não tinham senão um só coração e uma só alma para Deus’. O mesmo vale para o vinho. ‘Os grãos caem do cacho numerosos, mas se fundem em um só e mesmo licor. Tal é o modelo que nos deu Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele quis que aderíssemos a ele e instituiu sobre a sua mesa o sacramento de nossa paz e unidade. Aquele que recebe o sacramento da unidade sem guardar o laço da paz, recebe, em vez de um sacramento que lhe fortaleça, um testemunho que o condena.’ (Santo Agostinho, Sermão 272).

Em 1959, dizia Karl Rahner (teólogo alemão): “A celebração cultual exige uma tradução no plano da existência. Se no modo de viver das pessoas que celebram a Missa, a comunhão que dela decorre não é uma realidade existencial, esse modo de viver não pascal priva do seu sentido a celebração (...). Isso quer dizer que a comunhão na vida é condição prévia e necessária para a comunhão na Eucaristia. (...) A Missa não vivida priva a missa celebrada de uma característica essencial: a de ser expressão sensível e sacramental de uma forma de viver: a do Cristo”[3].

- - - - - - - - - - - [1] - JOÃO CRISÓSTOMO, Homilia sobre 1 Cor. , P.G. 61 col. 527. citado em TEXTES SPIRITUELS, n. 34, Abbaye de Tournay, France, 1976, p. 118. [2] - idem, p. 297. [3] - KARL RAHNER, A Eucaristia e os Homens de Hoje, Lisboa, Ed. Paulistas, 1968, p. 61- 65.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Sagrada misantropia, ou a Religião pós-moderna: a via crucis do sacro



A Pós-modernidade, em princípio, seria constituída pelos seguintes elementos: crise das “grandes narrativas”, dissolução dos tradicionais liames de orientação da Cultura, enfraquecimento dos discursos universalistas, valorização do particular e da diferença, avanço da secularização, e por fim a negação de um fundamento absoluto que estabeleça critério de Verdade. Este último aspecto impulsiona as atuais éticas niilistas, promovendo uma forte contraposição aos valores dogmáticos: identificados no discurso religioso, em particular, no discurso religioso cristão ocidental. Desse modo, parte dos pensadores niilistas pós-modernos defendem uma recusa dos discursos dogmáticos das religiões, porém em seu aspecto institucional. Dessa forma, tenta-se resguardar uma estreita e pequena via, na qual o sagrado e o discurso religioso possam ser pensados fora das amarras do dogmatismo, no limite se moldando quase que uma Religião niilista. Contudo, fora de tal via, a Religião é considerada como espaço no qual se gesta um discurso violento, pois com usurpação não reconhece as minorias nem a positividade das diferenças. Estabelecendo-se como portadora de uma verdade única absoluta, incapaz do diálogo com o diverso. Limitada por uma incomunicabilidade, típica daqueles que ouvem apenas a própria voz, a Religião se comportaria como lugar onde muito se fala, mas pouco se escuta: o santo sepulcro do diálogo. Contudo, o modo pós-moderno da experiência do sagrado não opera nesse registro, visto que não se apresenta como anúncio universal, mas como escuta individual: chamado divino e direto ao homem que não necessita de mediações institucionais. Assim, tratar-se-ia de uma forma de religiosidade que tenta não proceder pela observância de práticas externas, ou seja, apartada de todo aspecto ritualístico, não requerendo nem mesmo uma liturgia mínima ou uma religião do rito mínimo. Assim, seria possível se alçar para além do rito sem mito contemporâneo que se alimenta da indistinção atual entre sagrado e profano. Essa indistinção, típica do capitalismo avançado e consumista, desrealiza o sagrado para sacralizar o profano. Porém, este profano sacralizado não demanda qualquer esperança de vida futura, qualquer princípio de utopia, qualquer crítica ao presente, qualquer mensagem sobre o reino prometido. Pelo contrário, o profano tornado sacro não promete nada, pois tudo se realiza no consumo do presente. Ademais, toda utopia e princípio de esperança são empecilhos ao apelo consumista. Nada vai se realizar mais adiante, posto que tudo já é dado hoje, no instante mesmo em que se deseja, para ser consumido no aqui e no agora. O kairós é sempre hoje, momento oportuno para se
cosumir com prazer. Tal prazer está para além de qualquer curva orgástica, não tem princípio, nem ápice, nem fim. Gozo infindável, sentido como um todo continuo, logo ignora qualquer sequência temporal que se organize no eixo: passado, presente, futuro. Por conseguinte, se nada é esperado e tudo se oferece hoje, o estatuto do sacro é o mesmo do profano, não há mais aquém ou além, tudo se nivela no ponto mais baixo: aquele em que tudo se reduz ao cosumo. Posta na prateleira do consumo, a Religião, se quiser atrair como qualquer outro objeto de consumo deve abandonar tudo aquilo que é considerado ultrapassado. Ora, sendo a própria Religião considerada ultrapassada, ela para se integrar na homologação cultural de hoje deve deixar de ser ela mesma, se quiser sobreviver. Daí, a Religião se encontrar ante um paradoxo: para continuar existindo como religião deva deixar de ser religião. Mas, como isso poderia se realizar? Simplesmente deve deixar de se apresentar com áurea de sacralidade, se realiza então como Religião sem sacro. Estando nem acima, nem abaixo, mas reduzida à horizontalidade hodierna, nada mais aponta para o alto, nem há mais seta que indique uma via certa a ser seguida rumo ao futuro. Rebaixando-se ao nível do meramente ordinário, atualmente com base no sacro torna-se impossível formular uma crítica do presente. Pelo contrário, a Religião se submete à penúria insólita de um mundo cinicamente desrealizado. Mundo que enxerga como única fuga, para não encarar frontalmente o miserável caos que se estabelece, comemorar festivamente, celebrando a própria derrota como se uma vitória fosse. Como a tripulação de um naufrágio certo, prefere cantar enquanto se afoga, ao invés de procurar uma tábua de salvação. Ao se tornar sacro, o profano anula qualquer diferença entre os dois âmbitos, o sacro desrealizado não é apenas o profano sacralizando, mas também o sacro profanado. Não há nada mais profano, pois tudo é sagrado; não há nada mais sagrado, pois tudo é profano: perversa indistinção. Não apenas neste registro opera a religiosidade pós-moderna. Uma vez que o apelo e a vivência do sacro não passam mais pelo crivo de nenhum tipo de mediação, a religião perde seu caráter e dimensão comunitária. Ora, mas como poderia ser diferente, éticas niilistas não são feitas para sujeitos isolados? Opondo-se a qualquer apriorismo, neste horizonte ético, estabelecido na beira de um abismo, nem mesmo a existência do outro deve ser considerada, pois o outro pode tornar-se absoluto, logo pode desfazer o aspecto niilista da ação. Desse modo, na forma religiosa niilista pós-moderna não se apela à vida em comunidade. Portanto, se afasta de certo caráter de identidade comum, criador de liames de pertença e reciprocidade ao unir indivíduos na prática de um rito religioso comum. Tal recusa, da dimensão
comunitária das religiões, isto é, do elemento de civilidade e coletividade instaurado pelo reconhecimento de um sagrado comum, na concepção pós-moderna vincula-se à negação do caráter institucional da Religião. Na crítica pós-moderna, o religioso ao se institucionalizar possibilita a união entre violência e sagrado. Daí, a apologia de uma religião intimista, sustentada na reclusão solitária de indivíduos que não compartilham de um senso sagrado comum, pois, no registro pós-moderno, a experiência do sagrado é vivência particular incomunicável, algo absolutamente singular. Os indivíduos neste tipo degenerado de sacralidade são como misantropos divinos, posto que circunscrevem sua fé somente ao domínio privado. Busca-se evitar, assim, com a incomunicabilidade de uma fé privada e intimista, as motivações para guerras religiosas, e fanatismos sagrados, bem como a interferência de lideranças religiosas nos Estados laicos. Nova profissão de fé opositora de qualquer forma religiosa que desemboca em atuação pública, ou em prática de orientação da vida comum fundamentada em valores considerados divinos. Essa negativa do caráter comunitário das Religiões, se, em princípio, garante uma maior liberdade para a vivência da fé ao não limitar o sagrado em um rito pré-estabelecido e meramente institucional, pode, no entanto, criar idiossincrasia. Isto é, uma muda, limitada e solitária experiência do sagrado, que não se expressa além dos muros de uma singularidade intimista e rasa. Apresentando-se, pois, em oposição ao testemunho loquaz da dimensão social-afetiva encontrada, outrora, no mais elementar domínio do sentir religioso. Todavia, não se pode confundir tal caráter social-afetivo com um agregado de indivíduos que estão juntos apenas espacialmente. O avanço das novas formas de religiosidade, como por exemplo, o “engajado” protestantismo fundamentalista da atualidade e a renovação carismática, certificam o caráter meramente agregador da religiosidade que se apresentando como dotada de sacralidade age como se sacro nenhum houvesse. Por isso, cabe repetir: agregação e criação de liames afetivos são coisas distintas. Assim, repentinamente o frágil vínculo meramente agregador se dissolve na atomização de um sentir religioso acolhido nas profundezas de indivíduos que estão ladeados, porém não compartilham da criação de liames comuns. Criam-se, assim, fiéis perdidos nos labirintos de uma fé robusta na intimidade, porém frágil no caráter afetivo e social. Ora, são indivíduos gestados neste tipo de fé e vivência do sagrado (se é que ainda podemos ainda chamar de fé, algo que em sua ação impossibilita qualquer sacro) que se orgulham de seu credo, e ao mesmo tempo são capazes de defender um sistema de morte, adaptando-se cinicamente ao atual estado de penúria: existencial e coletiva. Fé incapaz de escapar das amarras de uma
apologia da vida privada, típica dos nossos tempos, desprezando, assim, uma sociabilidade que também pode ser gestada no âmbito religioso. Não uma sociabilidade imposta pela participação em repetidos ritos, porém criação de vínculos comuns que estão além da prática litúrgica ordinária. Nesse sentido, pode-se afirmar, não sem espanto, que o modo como os pós-modernos falam da experiência religiosa e a forma comportamental das novas religiosidades são próximos, visto que em ambos impera uma fé intimista, que apela fortemente ao chamado individual. De modo inapelavelmente cruciante, se confirma o diagnóstico dos pensadores pós-modernos: as atuais formas de vivência do sagrado se apresentam como individualização da fé, ou seja, fé intimista de misantropos. Experiência própria de nossa época que põe em risco os liames comuns, a exercitação da sociabilidade que demanda ao mesmo tempo manutenção e criação, perda da capacidade de pensar nossas existências de modo coletivo e não meramente privado. Consequentemente, é possível afirmar que em última instância a atual forma de religiosidade quer pós-moderna, quer carismático-pentecostal põe em risco a própria existência da Religião. Posto que na babel dos novos tempos, indivíduos atomizados, recolhidos na pura intimidade da fé, gestam uma experiência do sagrado que desconsidera a dimensão comunitária da Religião. Porém, pode haver religião e senso de sacro sem dimensão comunitária, sem mínima vivência coletiva, sem criação de liames afetivos comuns? Uma religião privada de sua dimensão comunitária e afetiva não é religião, mas apenas um rito fossilizado, ou na hipótese atual uma moda cultural do estetismo difuso. Após a proclamação da “morte de Deus”, hoje, com a contribuição das próprias religiões que comunicam o sagrado de modo midiático e misantropo, e mais atualmente por meio dos cristãos virtuais, presencia-se a morte e o sepultamento do sentido social-afetivo e de crítica do presente que ainda eram possíveis no âmbito da Religião. No entanto, de tal morte não se tem certeza de ressurreição. Dessa forma, depois da morte de Deus e da Religião, podem seguir-se as exéquias do homem. A sagrada misantropia é a última estação da via crucis do sacro.
Fran Alavina 

sexta-feira, 4 de abril de 2014

“PADRE, DEIXE LÁ AS FLORES”: MULHERES NO CONCÍLIO VATICANO II


Foi editado em Portugal um livro extraordinário que corre o risco de ficar invisível.
 Falo do volume “As 23 Mulheres do Concílio. A Presença Feminina no Vaticano II” (ed. Paulinas, 2012).
A autora é Adriana Valerio, um nome importante da teologia europeia, empenhada na reconstrução do lugar das mulheres na história do cristianismo. Com o Concílio Vaticano II [1962-1965], pela primeira vez, as mulheres acompanharam os mais decisivos debates da Igreja e deixaram neles uma marca.
É verdade que tinham de acompanhar em silêncio as assembleias (intervinham apenas nas comissões); nos intervalos, não entravam nos espaços de convívio (tinham uma pequena sala de café autónoma); e, mesmo as leigas, deviam cobrir os cabelos com um véu (a mais jovem de todas, Gladys Parentelli, recusou-se a isso e não foi incluída na foto de grupo). Mas não nos podemos esquecer que estamos em 1964.
 Numa outra instituição tão emblemática como o Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos, a participação das mulheres nem sequer estava prevista.
Foi, por isso, também uma mudança epocal aquela que aconteceu na terça-feira, 8 de setembro de 1964, em Castel Gandolfo, quando o Papa Paulo VI anunciou oficialmente a presença de auditoras.
 De setembro de 1964 a julho de 1965 foram chamadas 13 leigas e 10 religiosas, escolhidas pelos critérios de internacionalidade e de representação.
As religiosas eram:
* as americanas Mary Luke Tobin e Claudia Feddish;
* a egípcia Marie de la Croix Khouzam;
* a libanesa M. Henriette Ghanem;
* as francesas Sabine de Valon e Suzanne Guillemin;
* a alemã Juliana Thomas;
* a espanhola Cristina Estrada;
* a italiana Costantina Baldinucci;
* e a canadiana Jerome M. Chimy.

A primeira mulher leiga a entrar no Concílio foi Marie Louise Monnet (irmã do estadista Jean Monnet e que trazia um lema fortemente conciliar: “mon baptême me suffit” [basta-me o meu batismo]).
* a espanhola Pilar Bellosillo (diversas vezes nomeada porta-voz);
* a australiana Rosemary Goldie;
* a holandesa Anne-Marie Roeloffzen;
* as italianas Amalia Dematteis, Ida Marenghi-Marenco e Alda Miceli;
* a americana Catherine McCarthy; a argentina Margherita Moyano Llerena;
* a uruguaia Gladys Parentelli;
* a alemã Gertrud Ehrle;
* a checoslovaca Hedwig von Skoda;
* e a mexicana Luz Maria Longoria (que, com o marido Josè Alvarez Icaza Manero, era presidente do Movimento das Famílias Cristãs).
A estas auditoras juntaram-se ainda uma vintena de mulheres a título de “especialistas”, como
* a economista Barbara Ward, perita na questão da pobreza e desenvolvimento humano,
* Patricia Crowley, uma autoridade nas temáticas relativas ao controlo de nascimentos,
* ou Eileen Egan, uma pacifista.

A participação das auditoras, no guião da maioria dos padres conciliares, deveria revestir-se apenas de um carácter simbólico. Mas, na verdade, elas foram muito além disso, participando com competência e vivacidade nos trabalhos das comissões, deixando sinais importantes nos próprios documentos conciliares.
Alguns exemplos: a constituição “Lumen Gentium” vem a sublinhar a recusa de qualquer descriminação sexual; a “Gaudium et Spes” defende a visão unitária do homem e da mulher como “pessoa humana” e a igualdade fundamental de ambos.

O contributo de Luz Maria Alvarez Icaza e do seu marido na subcomissão da “Gaudium et Spes” terá sido determinante para alterar a visão da sexualidade conjugal como “remédio para a concupiscência” e descrevê-la como ato e expressão de amor.

E ficou célebre a resposta que a franzina Rosemary Goldie deu ao grande teólogo Yves Congar. No âmbito do debate sobre o esquema do apostolado dos leigos, ele estava pronto para inserir no documento uma elegante (mas condescendente) comparação das mulheres à delicadeza das flores. A australiana reagiu assim:

“Padre, deixe lá as flores. O que as mulheres querem da Igreja é ser reconhecidas como pessoas plenamente humanas”.


José Tolentino Mendonça Adriana Valério
In Expresso, 2.3.2013 - 07.03.13

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

DOM HELDER SEMPRE SURPREENDE




Nesta sexta-feira, dia 7, Dom Helder Camara, se vivo fosse, completaria 105 anos. Por isso haverá lançamento de um livro sobre ele na Livraria Paulus, às 16:00, com o título: “ALÉM DAS IDÉIAS. Histórias de vida de Dom Helder Camara”, escrito pelo pernambucano Félix Filho, que teve longa convivência com o Dom. Vale a pena conferir!
Quero contar uma história sobre Dom Helder, do jeito que ele mesmo a relatou. Ela mostra como o Dom era um homem preocupado com a nossa consciência sobre a vida que vivemos e as atitudes que tomamos:
“Lembro-me de certa vez”, conta o Dom, “que me convidaram para a inauguração duma grande empresa. Era dia de intenso calor, mas os escritórios dos diretores tinham o conforto dos aparelhos de ar-condicionado. Os garçons passavam travessas e mais travessas com garrafas de uísque. Uma, duas, muitas vezes. Eu tomava apenas refrigerantes – não por virtude excessiva, pois até gosto de um pouco de vinho, o que não me causa qualquer problema de ordem moral –, porque o álcool parece não gostar de mim... Em dado momento, um dos convidados se aproxima de mim e, grosseiramente, me diz: ‘Ora, ora, Dom Hélder!! Como é que vai a sua demagogia? O senhor ainda tem coragem de dizer que vivemos cercados de fome e miséria aqui em Recife?’. Outras pessoas juntaram-se a nós, encorajadas por aquelas provocações e querendo prossegui-la. Eu respondi a todos, em alto e bom som: ‘Vejam só!! Eu estava tranquilo no meu canto, mas vocês preferiram provocar-me.’ [...] ‘Pois eu lhes garanto, que se sairmos todos nos belos carros que vocês têm, em poucos minutos eu os mergulharei num ambiente da mais terrível fome e miséria....’
Para surpresa minha, aceitaram o desafio. Em não mais do que dez minutos chegamos a uma sapucaia, um desses locais onde os serviços públicos despejam, e depois incineram, o lixo da cidade. Eu conhecia bem o local... Chamei um conhecido, que é funcionário da Prefeitura e por ali trabalha. Ele tem, a propósito, o apelido de Doutor Lixeira... Longa experiência lhe ensinou a
ver, no meio daquele lixo todo, o que é que ainda pode ser aproveitado como alimento. É ele quem estabelece a classificação: comida de primeira classe, que os funcionários da limpeza pública reservam para si mesmos; comida de segunda classe, boa ainda para as pessoas que nada têm do que viver e se alojam por ali, disputando o refugo com os urubus que ciscam como galinhas pretas; comida de terceira classe, que se coleta e guarda para vendê-la depois nas tendinhas de quarta ou quinta classe, onde qualquer coisa serve para encher a barriga daqueles que vivem encharcados de álcool...
O Doutor Lixeira explicou tudo isso, muito direitinho, às dezenas de chefes de empresa que me haviam acompanhado até ali. Tive a impressão de que marcara profundamente o meu ponto, ensinando-lhes uma dura lição ... Mas qual!! No dia seguinte, um deles me chamou ao telefone e diz: - ‘Dom Hélder, que sujeito formidável aquele Doutor Lixeira!! Ele tem muita iniciativa! Bem que poderíamos empregá-lo .... .’
Foi terrível!! Como estamos longe de ver o espírito do Bom Samaritano! ... Não basta socorrer as vítimas. É necessário atacar as causas dessa inaceitável infelicidade”.

Já dá para entender por que o saudoso Dom Helder Camara era chamado de comunista, inclusive por inúmeros colegas seus de episcopado?

(Texto produzido por Fernando Antônio Gonçalves, e publicado no Jornal do Commercio, Recife, Pernambuco, em 24 de janeiro de 2014)


Fortaleza, 5-2-2014
Geraldo Frencken geraldof73@yahoo.com.br

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Exortação Apostólica "A Alegria do Evangelho", do papa Francisco.

Atenção, Povo de Deus:
Próximo sábado (04 de janeiro), às 14:00 h no Centro de Pastoral da Arquidiocese (Rua Rodrigues Júnior, esquina com Costa Barros), acontecerá o 1º encontro de estudo da Exortação Apostólica "A Alegria do Evangelho", do papa Francisco. O convite está sendo feito por "O GRUPO"  e pelo Movimento de Formação Cristã Libertadora (MFLC). A Exortação expõe, de forma direta e muito pessoal, o programa de reformas que o atual bispo de Roma pretende desenvolver na Igreja Católica. Nada melhor no início de um novo ano do que inteirar-se das coisas.
Exemplares da Exortação poderão ser adquiridos no local do encontro ou na livraria Paulinas.