domingo, 31 de março de 2013

Páscoa, tempo de Revolução!



João Facundo 

Nesses dias de Semana Santa vi vários textos e frases sobre o sentido da Páscoa, a sua origem e os seus diversos significados. Peguei-me a refletir e pude perceber o quando “romantizaram” a festa da Páscoa e o quanto isso pode deturpar o seu significado.

A festa da Páscoa tem origem no povo Judeu, ela retrata a saída do povo que vivia na escravidão e na opressão sob o julgo do faraó, saída essa conseguida pela ação de Deus em suas vidas, rumo a “terra prometida”. De forma sintética, essa é a visão bíblica que nos é apresentada nas páginas do livro do Êxodo e que até hoje faz parte da identidade deste povo, que ocupa, sobretudo, a região em que se encontra o Estado de Israel.

Um segundo significado é a releitura a partir de Jesus de Nazaré. Sua vida, sua morte e sua ressurreição. Isto é, o que Ele fez pelas pessoas, o que Ele fez para ser morto e ainda que morto, permanecer vivo. Parece-me, que a galera não reflete hoje: Que vida? Que morte? Que ressurreição?


Causa-me um verdadeiro incômodo ver diversas afirmações que “Ele morreu por nossos pecados”! Não que isso seja inverdade, mas, com esse tipo de lógica retiramos a atitude mais corajosa de Alguém que: causou um impacto profundo na vida de várias pessoas ao passar “fazendo o bem”, de uma pessoa que por fidelidade a Deus esteve sempre ao lado dos excluídos socialmente (pobres, prostitutas, viúvas, doentes) e por isso se colocava a favor de uns e contra outros... Jesus não era imparcial, um tipo de “intelectual autônomo”, sem vínculo nenhum. Jesus era parcial! E é essa parcialidade que o faz ser morto, na tradição de sua época, como um desgraçado... Afirmar o “pelos nossos pecados” é simplório demais para retratar tal vida.

Assim, Jesus é morto e se deixa morrer. É um revolucionário, no sentido de que aponto novos caminhos e atitudes. Foi preso, sofreu um processo político pelos poderes de sua época, foi torturado e sentenciado à morte. Ele viveu, sofreu, chorou e amou pela convicção de resgatar dos terrores deste mundo os que lá estavam, de ter misericórdia, isto é, de fazer com que os miseráveis passassem pelo crivo do coração e assim implantar o Reino de Deus.
 
A Páscoa é a festa da passagem! Da opressão para a liberdade, da morte para a vida, do desamor para o amor. Desejar Feliz Páscoa é desejar um tempo de mudanças, de inquietações, de revoluções... É perceber que para conquistar a liberdade (étnica, religiosa, de gênero, sexual, etc) é preciso ter coragem de sair das mãos do faraó e descer da cruz os diversos cristos que são diariamente crucificados. É afirmar como Pedro Casaldáliga: “ser o que se é, falar o que se crer, crer no que se prega, viver o que se proclama até as últimas consequências”.

Feliz Páscoa, feliz Revolução!


quinta-feira, 28 de março de 2013

NOSSA PÁSCOA





Os dias da Semana Santa nos oferecem uma boa oportunidade para refletirmos sobre o que sustenta nossa vida, dá sentido a nossa existência e abre perspectivas novas, baseadas numa profunda esperança.

Qual o sentido da Quinta-Feira Santa? Chama nossa atenção para a humildade, que tem sua expressão mais evidente no serviço, quer dizer, no ato de sermos servidores uns dos outros. O lava-pés não poderá restringir-se a um belo ato litúrgico. Quando Jesus diz “Eu lavei os seus pés, por isso vocês devem lavar os pés uns dos outros” (J. 13, 14.15), Ele não está querendo instalar uma cerimônia, e sim deseja suscitar, entre os seus discípulos e todos os seus seguidores, uma nova maneira de ser, uma atitude de vida, o jeito de servir, que, por sua vez, vai sustentar a sobrevivência da vida da raça humana e de toda a criação.
Qual o sentido da Sexta-Feira Santa? Chama nossa atenção para a entrega, a doação, que é o ato sublime do serviço. O serviço, prestado por Jesus à humanidade, mostra sua fidelidade irrestrita ao amor que doa a todo ser humano. Interessante é observar as três Marias (a mãe, Maria de Cléofas e Maria Madalena) que se encontram aos pés da cruz, junto com o discípulo predileto (cf. J. 19, 25-27). Estas quatro pessoas representam todos aqueles que são fiéis a Jesus, até o suplício. E ser fiel a Jesus só pode significar entregar-se ao outro sem restrições. Esta entrega, esta doação é o serviço que vai sustentar a sobrevivência da raça humana e de toda a criação.
Qual o sentido da Vigília Pascal? Chama nossa atenção para a perspectiva definitiva da vida. Como entender esta vida? Em outro momento, Jesus já se referiu a ela, falando em “vida em abundância” (J. 10, 10). Agora, esta vida em abundância só poderá se realizar, se estivermos dispostos a viver o serviço mútuo como entrega total ao outro e à outra. É desta sobrevivência da qual a raça humana e toda a criação devem ter sede.
Desta forma o círculo fechou: serviço em forma de doação para gerar vida.

Aqui não se trata de uma pregação de igreja ou de uma ou outra forma de cristianismo, pois esses valores, para os quais Jesus chama a nossa atenção, são universais, atemporais, ultrapassando todos os limites, barreiras, infiltrando todas as culturas e pensamentos que propõem vida. Tratam, portanto, da maneira única da humanidade e de toda a criação garantirem seu futuro, tornando-se respiráveis e sobreviventes.



Cremos que Páscoa seja isso. É só nesta Páscoa do Serviço e da Doação que a Paz vai invadir nossas vidas e todas as formas de vida em nosso planeta.


Vivemos, nestes dias pascais, um momento bonito ao percebermos o jeito simples com o qual Papa Francisco se relaciona com as pessoas. Na medida em que está deixando de lado pompas e circunstâncias, ele se aproxima mais do jeito serviçal do qual fala o Evangelho. Embora não tenha participado do Concílio Vaticano II, o Papa Francisco, como cardeal-arcebispo de Buenos Aires, já vivia aquele mesmo espírito tão presente em bispos, como Dom Helder e Dom Fragoso, que passavam a morar em casas humildes, vestiam-se de forma mais simples, usavam transportes populares etc. ., testemunhando a virtude da simplicidade do Evangelho através de sua própria vida. O gesto deles fazia um bem tremendo à Igreja. O jeito de ser do Papa Francisco ajudará também, por certo, a Igreja tornar-se um pouco mais Igreja de Cristo.
Porém, não deixemos de ter a consciência de que a Igreja não se resume no Papa e que ele sozinho não vai conseguir dar outro rosto a ela, pois “uma andorinha só não faz verão”. Assumamos, cada um(a) no seu canto, a nossa responsabilidade, pois mudar a Igreja é um trabalho a ser realizado em mutirão!

Mas, a esperança está viva e vida nova na Igreja é possível acontecer. A “primavera”, com a qual o Papa João XXIII tanto sonhava, poderá tornar-se realidade por um tempo bastante longo, se Deus quiser!

Cremos que Páscoa também seja isso: viver a esperança, sempre!


QUE A PÁSCOA DE TODAS E TODOS ESTEJA REPLETA
DE ESPERANÇA E VIDA!


(Geraldo Frencken,)

sexta-feira, 22 de março de 2013

DOM OSCAR ROMERO, MÁRTIR



Domingo próximo, dia 24 de março, nos lembramos da vida, morte e ressurreição de Oscar Romero, arcebispo de El Salvador. Na véspera de seu martírio, pronunciou as seguintes palavras, dirigindo-se diretamente à ditadura militar: “Frente à ordem de matar seus irmãos deve prevalecer a Lei de Deus, que afirma: ‘NÃO MATARÁS!’ Ninguém deve obedecer a uma lei imoral (...). Em favor deste povo sofrido, cujos gritos sobem ao céu de maneira sempre mais numerosa, suplico-lhes, peço-lhes, ordeno-lhes em nome de Deus: cesse a repressão!”. No dia seguinte, 24 de março de 1980, enquanto celebrava a Eucaristia na capela do Hospital da Divina Providência, Dom Oscar foi assassinado por um atirador de elite do exército salvadorenho. O mandante do crime, major Roberto D’Aubuisson, reconhecido como responsável, nunca foi processado.
Óscar Arnulfo Romero Galdámez, conhecido como Monsenhor Romero, nasceu em Ciudad Barrios em 15 de agosto de 1917 numa família de origem humilde. Ele foi ordenado padre em 4 de abril de 1942. Nomeado bispo auxiliar de San Salvador em 1970, tornou-se bispo de Santiago de Maria em 1974. Em 1977 foi nomeado Arcebispo de San Salvador. Escolhido como arcebispo por seu aparente conservadorismo, uma vez nomeado aderiu aos ideais da não-violência, posição que o levou a ser comparado ao Mahatma Gandhi e a Martin Luther King. Por isso, Oscar Romero passou a denunciar, em suas homilias dominicais, as numerosas violações de direitos humanos em El Salvador e manifestou publicamente sua solidariedade com as vítimas da violência política, no contexto da Guerra Civil de El Salvador. Dentro da Igreja Católica, defendia a "opção preferencial pelos pobres".
"A missão da Igreja é identificar-se com os pobres. Assim a Igreja encontra sua salvação."
(Dom Oscar Romero)

Dom Oscar passou por um verdadeiro e sofrido processo de conversão ao longo de sua vida como arcebispo, exatamente a partir do momento em que começou a “ver a opressão do povo salvadorenho e ouviu-o clamar sob os golpes dos chefes da ditadura militar. Ao conhecer seus sofrimentos, desceu do trono arquiepiscopal para libertar o povo de seus opressores, levando-o para uma vida de esperança, onde há de manar justiça e paz!” (cf. Êxodo 3, 7.8).
Na medida em que aprendia a caminhar junto ao povo “se tornou um anunciador da fé e da verdade, um resoluto defensor da justiça e, enfim, um amigo, um irmão, o defensor dos pobres e oprimidos, dos camponeses, dos operários, dos que
vivem nos bairros marginalizados”, como testemunhava um grupo de bispos latino-americanos, no dia 29 de março de 1980, às vésperas dos funerais de dom Romero.

Dom Oscar Romero não estava sozinho no sonho de uma Igreja dos pobres.

1. Ele se encontrava dentro da tradição bíblica-cristã a favor dos pobres:
* “Ele julgará os indefesos com justiça, se pronunciará com equidade pelos pobres da terra” (Isaías 11, 4);
* “Ele deu com largueza aos pobres: sua justiça subsiste sempre, sua fronte se levanta com altivez” (Salmo 112, 9);
* “Quem despreza o próximo, peca; mas quem tem pena da gente humilde é feliz” (Provérbios 14, 21);
* “A Boa Nova é anunciada aos pobres” (Mateus, 11, 5 e Lucas 4, 18; 7, 22);
* “Eles [Tiago, Pedro e João] pediram apenas que nos lembrássemos dos pobres, e isso eu tenho procurado fazer com muito cuidado.” (Gálatas 2, 10).

2. Ele se encontrava dentro da tradição histórica do cristianismo a favor dos pobres:
* Jesus, muito distante dos palácios, do luxo e da ostentação, viveu a pobreza.
* Francisco de Assis e Clara, no século XIII, seguiram seu mestre nestes preceitos.
* Vicente de Paulo, no século XVII, ficou conhecido por viver pobre e organizar a assistência aos pobres, a fim de que chegassem a ter vida mais digna. Ele dizia que “o amor é inventivo até o infinito!”, ou seja, sempre haveremos de construir novas formas de viver a pobreza e, ao mesmo tempo, buscar meios adequados de cuidar dos pobres.
* Nos dias do próprio Romero encontramos Tereza de Calcutá, e, mais perto de nós, Dom Helder Camara, Irmã Dulce e tantos outros que sabiam e sabem viver a grande lição do Evangelho na humildade, simplicidade, no serviço e no cuidado.
Todos, cada um(a) à sua maneira, têm testemunhado a pobreza evangélica como base da vida dos seguidores de Jesus, rumo a um mundo novo, o Reino de Deus, que podemos viver já aqui entre nós, aquele reino que já é, e, no mesmo momento, ainda não é.
3. Ele se encontrava dentro da tradição recente da Igreja a favor dos pobres:
* Papa João XXIII, em 11-09-1962, poucos dias antes do início do Concílio Vaticano II: “Pensando nos países subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta e quer realmente ser a Igreja de todos, em particular, a igreja dos pobres”;
* Um grupo de bispos, poucos dias antes do término do Concílio Vaticano II (16-11-1965), firmou o “Pacto das Catacumbas de uma Igreja serva e pobre”, dizendo: “Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Também renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas e cores berrantes), como nas insígnias de
matéria preciosa, que devem ser evangélicos.” Optaram eles, desta forma, por uma vida pobre, deixando seus palácios e indo morar em casas simples, tirando anéis e outros ornamentos, a fim de aproximar-se mais do jeito simples de ser de Jesus. Dom Helder Camara e Dom Fragoso estavam entre os bispos que assinaram e viveram este pacto.
* Conferência Episcopal Latino-Americana em Medellín (1968): “A Igreja da América Latina, dadas às condições de pobreza e subdesenvolvimento do continente, sente a urgência de traduzir o espírito de pobreza em gestos, atitudes e normas, quer a tornam um sinal lúcido e autêntico do Senhor. A pobreza de tantos irmãos clama por justiça, solidariedade, testemunho, compromisso, esforço e superação para o cumprimento pleno da missão salvífica confiada por Cristo”. (documento de Medellín, p. 146).
* Dom Oscar participou da Conferência Geral dos Bispos Latino-americanos em Puebla (1979), e identificou-se plenamente com o apelo dos bispos à “conversão de toda a Igreja para uma opção preferencial pelos pobres, no intuito de sua integral libertação” (documento de Puebla, n.º 1134).
O seu compromisso com a causa do povo sofrido de San Salvador, a sua opção evangélica e profética pelos pobres, a sua coragem de denunciar as injustiças, a sua força de anunciar a libertação através do Evangelho de Cristo, e a sua humildade de testemunhar a pobreza por vivê-la em sua própria vida, fizeram com que Oscar Romero se tornasse servidor do povo, até na consequencia do martírio.

“Uma religião com uma missa aos domingos, mas com semanas injustas, não agrada ao Senhor.
Uma religião com muitas orações, mas com hipocrisia no coração, não é cristã.
Uma Igreja que se organiza apenas para ser próspera, para ter muito dinheiro e conforto, mas que se esquece de se insurgir contra as injustiças, não é a verdadeira Igreja do nosso divino Redentor.”

(Dom Oscar Romero)



Fortaleza, 22-03-2013,
Geraldo Frencken

quarta-feira, 13 de março de 2013

JESUS BARRADO NO CONCLAVE DOS CARDEAIS


Qualquer semelhança com Jesus de Nazaré, de quem os Cardeais se dizem representantes, não é mera coincidência; mas, a pura verdade.
"Veio para os seus, e os seus não o receberam” observou mais tarde e tristemente um seu evangelista.

Artigo de Leonardo Boff



Cardeais da Igreja Católica vieram de todas as partes do mundo, cada qual carregando as angústias e as esperanças de seus povos, alguns martirizados pela Aids e outros atormentados pela fome e pela guerra. Mas todos mostravam certo constrangimento e até vergonha, pois vieram à luz os escândalos, alguns até criminosos, ocorridos em muitas dioceses do mundo, com os padres pedófilos; outros implicados na lavagem de dinheiro de mafiosos e superricos italianos que para escapar dos duros ajustes financeiros do governo italiano, usavam o bom nome do Banco Vaticano para enviar milhões de Euros para a Alemanha e para os USA. E havia ainda escândalos sexuais no interior da Cúria bem como intrigas internas e disputas de poder.
Face à gravidade da situação, o Papa reinante sentiu que lhe faltavam forças para enfrentar tão pesada crise e constatando o colapso de sua própria teologia e o fracasso do modelo de Igreja, distanciado do Vaticano II, que, sem sucesso, tentou implementar na cristandade, acabou honestamente renunciando. Não era covardia de um pastor que abandona o rebanho; mas a coragem de deixar o lugar para alguém mais apropriado para sanar o corpo ferido da Igreja-instituição.
Finalmente chegaram todos os Cardeais, alguns retardatários, à sede de São Pedro para elegerem um novo Papa. Fizeram várias reuniões prévias para ver como enfrentariam este fato inusitado da renúncia de um Papa e o que fariam com o volumoso relatório do estado degenerado da administração central da Igreja. Mas em fim decidiram que não podiam esperar mais e que em poucos dias deveriam realizar o Conclave.
Juntos rezaram e discutiram o estado da Terra e da Igreja, especialmente a crise moral e financeira que a todos preocupava e até escandalizava. Consideraram, à luz do Espírito de Deus, qual deles seria o mais apto para cumprir a difícil missão de "confirmar os irmãos e as irmãs na fé”, mandato que o Senhor conferira a Pedro e a seus sucessores e recuperar a moralidade perdida da instituição eclesiástica.
Enquanto lá estavam, fechados e isolados do mundo, eis que apareceu um senhor que pelo modo de vestir e pela cor de sua pele parecia ser um semita. Veio à porta da Capela Sistina e disse a um dos Cardeais retardatários: "posso entrar com o Senhor, pois todos os Cardeais são meus representantes e preciso urgentemente falar com eles”.
O Cardeal, pensando tratar-se de um louco, fez um gesto de irritação e disse-lhe benevolamente: "resolva seu problema com a guarda suíça”. E bateu a porta. Então, este estranho senhor, calmamente se dirigiu ao guarda suíço e lhe disse: "posso entrar para falar com os Cardeais, meus representantes”?
O guarda o olhou de cima para baixo e não acreditando no que ouvira, pediu, perplexo, que repetisse o que dissera. E ele o fez. O guarda com certo desdém lhe disse: "aqui entram somente cardeais e ninguém mais”.
Mas esta figura enigmática insistiu: "eu até falei com um dos Cardeais e todos eles são meus representantes, por isso, me permito de estar com eles”.
O guarda, com razão, pensou estar diante de um paranóico destes que se apresentam como Cesar ou Napoleão. Chamou o chefe da guarda que tudo ouvira. Este o agarrou pelos ombros e lhe disse com voz alterada: ”Aqui não é um hospital psiquiátrico. Só um louco imagina que os Cardeais são seus representantes”.
Mandou que o entregassem ao chefe de polícia de Roma. Lá, no prédio central, repetiu o mesmo pedido: "preciso falar urgentemente com meus representantes, os Cardeais”. O chefe de polícia nem se deu ao trabalho de ouvir direito. Com um simples gesto determinou que fosse retirado. Dois fortes policiais o jogaram numa cela escura.
De lá de dentro continuava a gritar. Como ninguém o fizesse calar, deram-lhe murros na boca e muitos socos. Mas ele, sangrando, continuava a gritar: "preciso falar com meus representantes, os Cardeais”. Até que irrompeu cela adentro um soldado enorme que começou a golpeá-lo sem parar até que caísse desmaiado. Depois amarrou-lhe os braços com um pano e o dependurou em dois suportes que havia na parede. Parecia um crucificado. E não se ouviu mais gritar: "preciso falar com meus representantes, os Cardeais”.
Ocorre que este misterioso personagem não era cardeal, nem patriarca, nem metropolita, nem arcebispo, nem bispo, nem padre, nem batizado, nem cristão, nem católico. Era um simples homem, um judeu da Galileia. Tinha uma mensagem que poderia salvar a Igreja e toda a humanidade. Mas ninguém quis ouvi-lo. Seu nome é Jeshua.
Qualquer semelhança com Jesus de Nazaré, de quem os Cardeais se dizem representantes, não é mera coincidência; mas, a pura verdade.
"Veio para os seus, e os seus não o receberam” observou mais tarde e tristemente um seu evangelista

terça-feira, 5 de março de 2013

A Igreja-instituição como “casta meretriz”






Leonardo Boff

Quem acompanhou o noticiário dos últimos dias acerca dos escândalos dentro do Vaticano, trazidos ao conhecimento pelos jornais italianos “La Repubblica” e o “La Stampa”, referindo um relatório com trezentas páginas, elaborado por três Cardeais provectos sobre o estado da cúria vaticana deve, naturalmente, ter ficado estarrecido. Posso imaginar nossos irmãos e irmãs piedosos que, fruto de um tipo de catequese exaltatória do Papa como “o doce Cristo na Terra” devam estar sofrendo muito, pois amam o justo, o verdadeiro e o transparente e jamais quereriam ligar sua figura a notórios malfeitos de seus assistentes e cooperadores.

O conteúdo gravíssimo destes relatórios reforçaram, no meu entender, a vontade do Papa de renunciar. Aí se comprovava uma atmosfera de promiscuidade, de luta de poder entre “monsignori”, de uma rede de homossexualismo gay dentro do Vaticano e desvio de dinheiro do Banco do Vaticano. Como se não bastassem os crimes de pedofilia em tantas dioceses que desmoralizaram profundamente a instituição-Igreja.
Quem conhece um pouco a história da Igreja – e nós profissionais da área temos que estudá-la detalhadamente – não se escandaliza. Houve épocas de verdadeiro descalabro do Pontificado com Papas adúlteros, assassinos e vendilhões. A partir do Papa Formoso (891-896) até o Papa Silvestre (999-1003) se instaurou segundo o grande historiador Card. Barônio a “era pornocrática” da alta hierarquia da Igreja. Poucos Papas escapavam de serem depostos ou assassinados. Sergio III (904-911) assassinou seus dois predecessores, o Papa Cristóvão e Leão V.

A grande reviravolta na Igreja como um todo, aconteceu, com conseqüências para toda a história ulterior, com o Papa Gregório VII em 1077. Para defender seus direitos e a liberdade da instituição-Igreja contra reis e príncipes que a manipulavam, publicou um documento que leva este significativo título “Dictatus Papae” que literalmente traduzido significa “a Ditadura do Papa”. Por este documento, ele assumia todos os poderes, podendo julgar a todos sem ser julgado por ninguém. O grande historiador das idéias eclesiológicas Jean-Yves Congar, dominicano, considera a maior revolução acontecida na Igreja. De uma Igreja-comunidade passou a ser uma instituição-sociedade monárquica e absolutista, organizada de forma piramidal e que vem até os dias atuais.
Efetivamente, o cânon 331 do atual Direito Canônico se liga a esta compreensão, atribuindo ao Papa poderes que, na verdade, não caberiam a nenhum mortal, senão somente a Deus: ”Em virtude de seu ofício, o Papa tem o poder ordinário, supremo, pleno, imediato, universal” e em alguns casos precisos, “infalível”.
Esse eminente teólogo, tomando a minha defesa face ao processo doutrinário movido pelo Card. Joseph Ratzinger em razão do livro “Igreja:carisma e poder” escreveu um artigo no “La Croix” (8/9/1984) sobre o “O carisma do poder central”. Aí escreve: “O carisma do poder central é não ter nenhuma dúvida. Ora, não ter nenhuma dúvida sobre si mesmo é, a um tempo, magnífico e terrível. É magnífico porque o carisma do centro consiste precisamente em
permanecer firme quando tudo ao redor vacila. E é terrível porque em Roma estão homens que tem limites, limites em sua inteligência, limites em seu vocabulário, limites em suas referências, limites no seu ângulo de visão”. E eu acrescentaria ainda limites em sua ética e moral.

Sempre se diz que a Igreja é “santa e pecadora” e deve ser “sempre reformada”. Mas não é o que ocorreu durante séculos nem após o explícito desejo do Concílio Vaticano II e do atual Papa Bento XVI. A instituição mais velha do Ocidente incorporou privilégios, hábitos, costumes políticos palacianos e principescos, de resistência e de oposição que praticamente impediu ou distorceu todas as tentativas de reforma.
Só que desta vez se chegou a um ponto de altíssima desmoralização, com práticas até criminosa que não podem mais ser negadas e que demandam mudanças fundamentais no aparelho de governo da Igreja. Caso contrário, este tipo de institucionalidade tristemente envelhecida e crepuscular definhará até entrar em ocaso. Os atuais escândalos sempre houveram na cúria vaticana apenas que não havia um providencial Vatileaks para trazê-los a público e indignar o Papa e a maioria dos cristãos.

Meu sentimento do mundo me diz que estas perversidades no espaço do sagrado e no centro de referência para toda a cristandade – o Papado – (onde deveria primar a virtude e até a santidade) são conseqüência desta centralização absolutista do poder papal. Ele faz de todos vassalos, submissos e ávidos por estarem fisicamente perto do portador do supremo poder, o Papa. Um poder absoluto, por sua natureza, limita e até nega a liberdade dos outros, favorece a criação de grupos de anti-poder, capelinhas de burocratas do sagrado contra outras, pratica largamente a simonía que é compra e venda de vantagens, promove adulações e destrói os mecanismos da transparência. No fundo, todos desconfiam de todos. E cada qual procura a satisfação pessoal da forma que melhor pode. Por isso, sempre foi problemática a observância do celibato dentro da cúria vaticana, como se está revelando agora com a existência de uma verdadeira rede de prostituição gay.
Enquanto esse poder não se descentralizar e não outorgar mais participação de todos os estratos do povo de Deus, homens e mulheres, na condução dos caminhos da Igreja o tumor causador desta enfermidade perdurará. Diz-se que Bento XVI passará a todos os Cardeais o referido relatório para cada um saber que problemas irá enfrentar caso seja eleito Papa. E a urgência que terá de introduzir radicais transformações. Desde o tempo da Reforma que se ouve o grito: ”reforma na Cabeça e nos membros”. Porque nunca aconteceu, surgiu a Reforma como gesto desesperado dos reformadores de fazerem por própria conta tal empreendimento.

Para ilustração dos cristãos e dos interessados em assuntos eclesiásticos, voltemos à questão dos escândalos. A intenção é desdramatizá-los, permitir que se tenha uma noção menos idealista e, por vezes, idolátrica da hierarquia e da figura do Papa e libertar a liberdade para a qual Cristo nos chamou (Galatas 5,1). Nisso não vai nenhum gosto pelo Negativo nem vontade de acrescentar desmoralização sobre desmoralização. O cristão tem que ser adulto, não pode se deixar infantilizar nem permitir que lhe neguem
conhecimentos em teologia e em história para dar-se conta de quão humana e demasiadamente humana pode ser a instituição que nos vem dos Apóstolos.
Há uma longa tradição teológica que se refere à Igreja como casta meretriz, tema abordado detalhadamente por um grande teólogo, amigo do atual Papa, Hans Urs von Balthasar (ver em Sponsa Verbi, Einsiedeln 1971, 203-305). Em várias ocasiões o teólogo J. Ratzinger se reportou a esta denominação.
A Igreja é uma meretriz que toda noite se entrega à prostituição; é casta porque Cristo, cada manhã se compadece dela, a lava e a ama.
O habitus meretrius da instituição, o vício do meretrício, foi duramente criticado pelos Santos Padres da Igreja como Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Jerônimo e outros. São Pedro Damião chega a chamar o referido Gregório VII de “Santo Satanás” (D. Romag, Compêndio da história da Igreja, vol 2, Petrópolis 1950,p.112). Essa denominação dura nos remete àquela de Cristo dirigida a Pedro. Por causa de sua profissão de fé o chama “de pedra”mas por causa de sua pouca fé e de não entender os desígnios de Deus o qualificou de “Satanás”(Evangelho de Mateus 16,23). São Paulo parece um moderno falando quando diz a seus opositores com fúria: “Oxalá sejam castrados todos os que vos perturbam”(Gálatas 5.12).

Há portanto, lugar para a profecia na Igreja e para a denúncias dos malfeitos que podem ocorrer no meio eclesiástico e também no meio dos fiéis.
Vou referir outro exemplo tirado de um santo querido da maioria dos católicos brasileiros, por sua candura e bondade: Santo Antônio de Pádua. Em seus sermões, famosos na época, não se mostra nada doce e gentil. Fez vigorosa crítica aos prelados devassos de seu tempo. Diz ele: “os bispos são cachorros sem nenhuma vergonha, porque sua frente tem cara de meretriz e por isso mesmo não querem criar vergonha”(uso a edição crítica em latim publicada em Lisboa em 2 vol em 1895). Isto foi proferido no sermão do quarto domingo depois de Pentecostes ( p. 278). De outra vez, chama os prelados de “macacos no telhado, presidindo dai o povo de Deus”(op cit p. 348). E continua:” o bispo da Igreja é um escravo que pretende reinar, príncipe iniquo, leão que ruge, urso faminto de rapina que espolia o povo pobre”(p.348). Por fim na festa de São Pedro ergue a voz e denuncia:”Veja que Cristo disse três vezes: apascenta e nenhuma vez tosquia e ordenha… Ai daquele que não apascenta nenhuma vez e tosquia e ordena três ou mais vezes…ele é um dragão ao lado da arca do Senhor que não possui mais que aparência e não a verdade”(vol. 2, 918).

O teólogo Joseph Ratzinger explica o sentido deste tipo de denúncias proféticas:” O sentido da profecia reside, na verdade, menos em algumas predições do que no protesto profético: protesto contra a auto-satisfação das instituições, auto-satisfação que substitui a moral pelo rito e a conversão pelas cerimônias” (Das neue Volk Gottes, Düsseldorf 1969, p. 250, existe tradução português).
Ratzinger critica com ênfase a separação que fizemos com referência à figura de Pedro: antes da Páscoa, o traidor; depois de Pentecostes, o fiel. “Pedro continua vivendo esta tensão do antes e do depois; ele continua sendo as duas coisas: a pedra e o escândalo… Não aconteceu, ao largo de toda a história da Igreja, que o Papa, simultaneamente, foi o sucessor de Pedro, a “pedra” e o “escândalo”(p. 259)?
Aonde queremos chegar com tudo isso? Queremos chegar ao reconhecimento de que a igreja- instituição de papas, bispos e padres, é feita de homens que podem trair, negar e fazer do poder religioso negócio e instrumento de autosatisfação. Tal reconhecimento é terapêutico, pois nos cura de toda uma ideologia idolátrica ao redor da figura do Papa, tido como praticamente infalível. Isso é visível em setores conservadores e fundamentalistas de movimentos católicos leigos e também de grupos de padres. Em alguns vigora uma verdadeira papolatria que Bento XVI procurou sempre evitar.
A crise atual da Igreja provocou a renúncia de um Papa que se deu conta de que não tinha mais o vigor necessário para sanar escândalos de tal gravidade. “Jogou a toalha” com humildade. Que outro mais jovem venha e assuma a tarefa árdua e dura de limpar a corrupção da cúria romana e do universo dos pedófilos, eventualmente puna, deponha e envie alguns mais renitentes para algum convento para fazer penitência e se emendar de vida.
Só quem ama a Igreja pode fazer-lhe as críticas que lhe fizemos, citando textos de autoridade clássicas do passado. Quem deixou de amar a pessoa um dia amada, se torna indiferente à sua vida e destino. Nós nos interessamos à semelhança do amigo e de irmão de tribulação Hans Küng, (foi condenado pela ex-Inquisição) talvez um dos teólogos que mais ama a Igreja e por isso a critica.

Não queremos que cristãos cultivem este sentimento de descaso e de indiferença. Por piores que tenham sido seus erros e equívocos históricos, a instituição-Igreja guarda a memória sagrada de Jesus e a gramática dos evangelhos. Ela prega libertação, sabendo que geralmente são outros que libertam e não ela.
Mesmo assim vale estar dentro dela, como estavam São Francisco, dom Helder Câmara, João XXIII e os notáveis teólogos que ajudaram a fazer o Concílio Vaticano II e que antes haviam sido todos condenados pela ex-Inquisição, como De Lubac, Chenu, Congar, Rahner e outros. Cumpre ajudá-la a sair deste embaraço, alimentando-nos mais do sonho de Jesus de um Reino de justiça, de paz e de reconciliação com Deus e do seguimento de sua causa e destino do que de simples e justificada indignação que pode cair facilmente no farisaísmo e no moralismo.
Mais reflexões desta ordem se encontram no meu Igreja: carisma e poder (Record 2005) especialmente no Apêndice com todas a atas do processo havido no interior da ex-Inquisição em 1984.