sexta-feira, 22 de maio de 2015

Fé remake, espiritualidade selfie: Religião Estética


Uma compreensão ou um diagnóstico crítico dos fenômenos religiosos atuais não é possível desconsiderando a Estética, e o estético. Não se trata, todavia, da Estética em seu sentido mais hodierno de cosmética, nem da significação acadêmica clássica de reflexão sobre o Belo e as Artes. Trata-se da Estética como âmbito mais amplo da sensibilidade e dos afetos, do estético como ordem de sentido que ultrapassa o limite que outrora lhe era imposto. É inegável que vivemos em tempos no qual tudo se submete ao estético. Isto é, vivemos um tempo de estetização, preponderando o império das imagens, a soberania da visibilidade ostentatória e a excitação ilimitada.
O campo passional é expandido para além da afetividade comum, torna-se, na verdade, alvo da panacéia midiática. Nesta, todos querem ser vistos, mas ninguém vê, pois todos se tornam “narcisos frágeis”, cujo eixo gravitacional é a visibilidade do próprio umbigo. O narciso mitológico satisfazia-se em ver a si mesmo, porém os narcisos contemporâneos nunca estão satisfeitos com sua própria imagem refletida. Os narcisos frágeis não querem contemplar a si mesmos solitariamente, mas querem que os outros os contemplem olhando para si: se ele só olha para si mesmo, os outros devem fazer o mesmo. O narcisismo mitológico não exigia espectadores, na atualidade os narcisos não querem ver, mas ser vistos. O narciso mitológico era belo, os narcisos contemporâneos são violentos e perversos. Nesse sentido, uma selfie não é somente uma inocente herança artística do auto-retrato gestado na pintura clássica, ela nunca é apenas um fenômeno estético. Uma vez que a estética submeteu os mais diversos âmbitos, toda selfie é também um gesto político. Vejam-se quantas selfies são feitas pelos celerados que compareceram nas últimas manifestações contra o governo na avenida paulista. Não importa tanto que estejam lá, mas que se veja que estão lá. Dos fascistas mais cheios de ódio que pedem intervenção militar aos analfabetos políticos que não sabem diferenciar esquerda e direita: todos fazem um número infindável de selfies. Se não são concordes nos discursos, estão unidos pelo mesmo gesto estético-político: apontar a câmera para si mesmo, fazendo da sua imagem uma visibilidade excitante.
O número de selfies é sempre diretamente proporcional ao nível de excitação. Há entre estes dois aspectos um círculo vicioso que satisfaz as imposições difusas do império das imagens, da soberania da visibilidade ostentatória e da excitação ilimitada. Logo, de certo modo, apontar a câmera para si mesmo é um gesto político que reproduz
o narcisismo individualista contemporâneo que desvaloriza a criação dos liames comuns, uma aversão a todo sentir coletivo. “Pode uma soma de individualista criar um espaço comum?” Indaga o pensador italiano Pietro Barcellona, criador do termo “narcisos frágeis” e “egoísmo maduro” para caracterizar o individualismo contemporâneo. Ora, se as mais diversas práticas hodiernas se orientam pela ordem estética da exacerbação imagética e da excitação ilimitada, o que ocorre quando os gestos religiosos, os ditos “atos de fé” reproduzem tais práticas?
Na cultura do sucesso permanece somente quem adquire visibilidade, quem se reduz à sua própria imagem ostentatória, quem excita a si mesmo e os outros se valendo dos meios dispostos pela mídia e pelo mundo virtual. Desse modo, nos mais diversos âmbitos todos são chamados a serem empreendedores da sua própria imagem: publicitários de si. Logo, se para permanecer é preciso unir visibilidade e excitação, ambas midiáticas, não resta outra coisa senão copiar o estabelecido. Neste caso, as Igrejas Neopentecostais, no lado protestante, e a Renovação Carismática, no lado católico, foram os primeiros empreendedores. Resultando disso uma liturgia da cópia, uma fé remake, que além de se adequar ao status quo das perversidades imagéticas, o reproduz, fundando-se na categoria sagrado. O autoproclamado reavivamento do espírito está envolto na soberania da visibilidade ostentatória e na excitação ilimitada.
Trata-se de um pentecostes midiático. São programas de TV, verdadeiros talk shows da fé, adorações que se satisfazem com a transmissão ao vivo do ato, “louvações” na madrugada que em nível de excitação não perdem em nada para as raves, já que acontecem nos mesmo horários, “louvores” que podem ser ouvidos mesmo quando se desliga o áudio do aparelho. Um nível de excitação que a mera repetição do tradicionalismo não pode oferecer. É preciso copiar, celebrar remakes do que aí está, pois, segundo se afirma, é uma exigência da nova forma de evangelizar. Ademais, conforme se repete: “evangelizar é preciso”, embora quase nunca se discuta com propriedade as formas de evangelização. Ora, na simbiose entre religião e estética, evangelizar tornou-se antes de tudo um ato de excitação: sociedade excitada, religião excitada. Aparecimento, portanto, de uma religião estética.
Em um mundo no qual o real tornou-se pesado de mais, o fardo não pode ser mais aliviado pelas formas de lazer tradicionais. É preciso manter-se anestesiado. Mas no caso da sensibilidade contemporânea o efeito anestético só ocorre quando a excitação
alcança um nível extradiornário. É necessário sentir exageradamente, para sentir infimamente. Quem quer sentir tudo, sempre e com a mesma intensidade, em verdade, não tem sensibilidade, uma vez que não reconhece mais a diferença entre ordinário e extraordinário. Um nível de excitação que faz com que o real apareça como ficção, ou seja, um nível de excitação que anestesia. Em tempos da amplitude do âmbito estético o efeito é o contrário do que se mostra na superfície: a estética não é mais que anestética.
Ora, para anestesiar bem é preciso apartar os laços comuns de pertença, afastar-se da concretude do real, reduzindo o sentir à mera disposição anímica individual e não mais como disposição coletiva. Isto faz a religião midiática, proporciona uma fé intimista, egoísta, descompromissada com qualquer transformação ou crítica da realidade social. Não poderia ser diferente, pois o real é sentido como ficção, e é próprio de toda ficção, bem sucedida, gerar no expectador o sentimento de que a ordem de sentido que se assiste não pode ser alterada. Os efeitos da anestética religiosa midiática não é um simples “ópio do povo”, uma vez que sua capacidade alucinógena tem efeitos mais fortes e duradouros do que o narcótico da papoula. Ademias, no “ópio do povo”, havia povo, ou seja, um sentir compartilhado, hoje há apenas narcisos frágeis que reproduzem a lógica perversa das idiossincrasias, que medem o mundo pelas visualizações de suas selfies, fazendo do real uma sucessão da visibilidade de auto-retrato de corpos sem carne.
Fran Alavina.

sábado, 4 de abril de 2015

Evangelho da Carne, ou Ressurreição: nossa dignidade está no Corpo



Não resta dúvida, no âmbito da cultura ocidental, que o cristianismo é a religião do corpo. Seja negando, relativizando ou exaltando, os cristãos fazem do corpo o objeto central de seu discurso. Do princípio ao fim da narrativa cristológica, nos mistérios que a religião cristã diz proclamar está o corpo: do nascimento à ressurreição, pois se vai do “verbo que se fez carne” ao “corpo glorioso”. O Deus encarnado do cristianismo jamais se reduz ao puro espírito, do contrário não seria mais que uma abstração, uma ideia vazia, imaginação amorfa. Longe disso, os primeiros cristãos, cujo testemunho mais imediato legaram-nos as narrativas evangélicas, proclamaram obstinadamente que: “(...) virão a glória de Deus”, (Jo, 1, 14). Todavia, só viram tal glória porque o “verbo se fez carne”, (Jo, 1, 14). Ora, toda visibilidade pressupõe um corpo. O prólogo de João aponta que a manifestação de Deus só se realiza no fazer-se carne. A consequência destas afirmativas não pode ser outra: o corpo é a condição de possibilidade do sagrado. Logo, o núcleo central da mensagem cristã ser o corpo. O cristianismo funda-se no corpo, e não se constituiria como tal se não fosse um discurso religioso sobre o corpo. A complexidade do cristianismo reproduz o enigma em que se transforma o corpo. Não seria justamente por se constituir como discurso sobre o corpo, que o cristianismo conseguiu alcançar os mais diversos âmbitos?
Ora, olvidando está problema não menos importante, o fato é que a experiência do cristianismo em suas origens está marcada por uma concepção singular do lugar do corpo no mundo. Para aqueles primeiros seguidores do Galileu, eles estiveram na presença de Deus, não porque estavam em oração nos templos, isto é, fora da vida doméstica comum, em um lugar e em um registro de tempo extraordinários. Estiveram na presença de Deus no registro comum do tempo e do espaço, na espontaneidade da vida cotidiana, ou seja, no âmbito ordinário, e não naquele extraordinário. O que há de mais ordinário e comum do que o corpo? Somos todos corpos. Desse modo, pode-se afirmar que a primeira igualdade experimentada pelos cristãos, lugar original no qual se gesta um discurso igualitário mais amplo, é a igualdade dos corpos. Todos somos corpos, e no cristianismo Deus também é tão corpo quanto nós. Poderia haver Deus mais próximo do que este que é um corpo? Assim, aqueles que eram os últimos de seu mundo puderam sentir o cheiro de Deus, ouvir sua voz, tocá-lo, comer e beber com ele. Estiveram com Deus, não porque haviam se transformado em espíritos, almas puras, seres desencarnados, porém porque estavam todos no mesmo nível: o do corpo; homem corpo, Deus corpo. Esta primeira experiência do cristianismo nascente impõe um paradoxo: se é mais espiritual, somente na medida em que se afirma o corpo em sua integralidade. Quanto mais corporal, mais espiritual. Mas de que corpo fala a experiência do cristianismo das origens?
Não se tratava de um corpo classista asséptico (como o dos nobres ricos e daqueles que frequentavam as cortes), nem de um corpo tratado como matéria impura, alvo das mais detalhadas prescrições ritualísticas (como o dos fariseus), mas sim corpo
de povo, corpo de povo pobre. Corpo que por ser corpo de povo pobre tem sua dignidade reduzida, pois forçado à cruel luta pela sobrevivência, sem direito ao lazer. Isto é, corpo ao qual é negado o descanso. É o corpo dos que não são mais que seus próprios corpos. É o corpo cansado dos que trabalham e não podem usufruir dos frutos do esforço de seus próprios corpos. É o corpo subnutrido, odorante, corpo que não é objeto de assepsia, nem de rituais de pureza, já que é considerado sempre aquém de um corpo digno. O corpo do povo pobre é corpo na sua espontaneidade mais imediata, é corpo que tem sede e fome: em suma, é o corpo das vicissitudes. É o corpo impuro e abjeto da mulher adúltera, alvo de apedrejamento; é o corpo dos coxos, que por serem considerados corpos defeituosos devem ser fadados à exclusão; é o corpo dos cegos, rebaixado a corpo sem luz, sem direção; isto é, rebaixado a corpo sem autonomia. É o corpo dos leprosos, desfeitos em sua dignidade por possuírem uma carne feia, fedorenta. Ora, o corpo de Jesus é tão corpo quanto o destes. Por isso, o Deus cristão é o Deus sofredor, o Deus que perece e morre simplesmente porque é um corpo. Tudo se dá pelo corpo e no corpo. Todo acontecer supõe uma disposição corporal, se não há corpo, nada há. Pois, o corpo é sempre um dar-se, dar-se no/ao mundo, dar-se aos seus, dar-se a quem se quer dar. Quem entrega com gratuidade o próprio corpo, não oferece somente um corpo, mas se oferece por inteiro: “isto é o meu corpo”, (Mc, 14, 22).
Sem sua singular concepção de corpo, o cristianismo nada mais é que uma abstração, uma religião amorfa, que por alienar o lugar central do corpo em suas origens, torna-se o discurso que demoniza o corpo e o submete ao império do espírito. Mas, nesta atitude está o esquecimento do paradoxo original: se é mais espiritual, somente na medida em que se afirma o corpo em sua integralidade. Quem nega seu próprio corpo, sua condição corporal, não nega apenas a si mesmo, mas nega o próprio Deus que também é corpo. Nisto reside o núcleo da escatologia cristã. Jesus faz de si mesmo um corpo sofredor, independentemente de tempo e lugar. Todo corpo sofredor é o corpo do próprio Cristo, pois em um corpo que sofre, está o sofrer de todo corpo. (Mt, 25, 31-46), “(...) tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber, eu era estrangeiro e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; doente, e me visitastes; na prisão e vistes a mim”. Corpo esfomeado, corpo sedento, corpo estranho, corpo abandonado ao relento, corpo enfermo, corpo cativo. A mensagem é muito clara: não é por meio de obras “espirituais”, mais por meio das obras “corporais” que se decide o mistério da salvação final. Não o que se faz ao espírito, mas o que se faz ao corpo: aí reside o núcleo da boa nova. O reino de Deus não é o reino dos espíritos puros, mas o reino no qual as necessidades dos corpos são satisfeitas. O lugar onde não há mais corpos sofredores.
Justamente na incompreensão da mensagem da igualdade e integralidade dos corpos, gesta-se o destino final do corpo do Cristo. O crucifixo é antes de qualquer coisa um corpo que agoniza. Corpo de carne dilacerada. Um corpo que se tornou abjeto, que se tornou imagem do escárnio. No corpo do crucificado há uma identificação total, pois ali está um corpo imerso na vicissitude ao qual todo corpo está exposto. Qualquer corpo pode ser carne dilacerada, pode-se tornar abjeto: simplesmente porque é corpo. Todos
os corpos partilham a mesma condição, assim estão expostos aos mesmos escárnios. O corpo do crucificado é o corpo que incomoda, por isso deve ser calado à força. Um corpo que deve ser morto para deixar de ser corpo. Corpo de povo pobre que ousou ser mais que a carne da sobrevivência. No mundo da imposição da regulação dos corpos, para todo corpo ousado não resta outro destino, senão: o escárnio, a abjeção e a morte violenta.
Porém, o cristianismo foi além de uma mensagem igualitária dos corpos. O corpo ousado do Cristo ousou uma vez mais. Ousou afirmar a supremacia do corpo sobre tudo, até mesmo sobre a morte, pois o que é a ressurreição senão a vitória do corpo e da carne? (Lc, 24, 39-41), “Olhai as minhas mãos e os meus pés: Sou eu mesmo. Tocai-me, olhai: um espírito não tem carne, nem ossos como vós vedes que eu tenho”. O corpo ousado que havia sido dilacerado, o corpo da carne rasgada, retorna. A identidade do Cristo está no seu corpo: “olhai as minhas mãos e os meus pés: Sou eu mesmo”. Ele não é nada além que seu próprio corpo, e como corpo volta aos seus. Não poderia ser diferente, o corpo não é só o lugar da sensibilidade, mas também o âmbito da afetividade. O afeto entre Jesus e os seus, é antes de qualquer coisa uma afeto corporal: “tocai, olhai”. Ele quase que está a implorar, como se dissesse: sintam-me, pois sou um corpo, não um espírito ou uma lembrança vaga de suas mentes. Esta experiência é a experiência do encontro dos corpos. Dos corpos que se encontraram e sofrem as mesmas vicissitudes. No carne do corpo se imprimem as memórias como marcas do tempo, do tempo do afeto e do desafeto.
Afeto sem corpo é afeto amorfo. A forma do afeto se dá no corpo, pela convivência comum dos corpos. Assim, a experiência da crucificação não foi apenas a experiência do corpo sofredor, mas a experiência da perda do objeto de afeto, que pode resultar no esquecimento do afeto. Desse modo, é necessário voltar para o corpo, pois do contrário corre-se o risco da perda total da afetividade, outrora mantida pela convivência comum dos corpos. É a necessidade do corpo, como lugar genético da afetividade, que faz com a mulher marcada pelo trauma da perda do corpo do amado, vá ao sepulcro. Seu afeto não se desfaz do corpo, por isso é preciso envolver o corpo do amado em carinho, cuidados e perfumes, (Jo 20, 1-3). No sepulcro, paradoxalmente o lugar resevado ao desaparecimento do corpo, se dá a experiência da ressurreição, isto é, o encontro dos corpos marcados pela afetividade comum. Ela encontra-se não com um corpo morto, mas com um corpo vivo. O corpo ousado do Cristo é insurgente. Como todo corpo, ele não cabe na regulação, na imposição. À imposição do escárnio e da abjeção, o corpo responde com a vida. Não resta alternativa: ser mais corpo, pois só se pode ser mais que corpo, quando se é corpo integralmente.
Por conseguinte, nestes tempos em que o corpo é objeto de preocupação quase patológica, onde tudo parece se reduzir ao corporal, é preciso reler o anúncio evangélico, fruto da experiência da ressurreição, pela perspectiva do corpo. A boa-nova deve ser lida como narrativa da carne, como discurso que se centra nos corpos e não como mensagem que se dirige ao “espírito”. Abre-se assim uma perspectiva libertadora, que não impõe aos corpos o império do espírito, não padroniza o uso dos prazeres, que
não regula os corpos considerados dissidentes, pois a mensagem de vida plena não se realiza sem que o corpo seja livre. Corpos que se dão livremente na afetividade cotidiana, como na experiência do cristianismo das origens. Aí reside o futuro da mensagem cristã, pois afinal, o que fizeram ao ousado corpo de Cristo, também não se faz aos corpos ousados de hoje?
Fran Alavina.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO PARA A CELEBRAÇÃO DO XLVIII DIA MUNDIAL DA PA


1º DE JANEIRO DE 2015
JÁ NÃO ESCRAVOS, MAS IRMÃOS
1. No início dum novo ano, que acolhemos como uma graça e um dom de Deus para a humanidade, desejo dirigir, a cada homem e mulher, bem como a todos os povos e nações do mundo, aos chefes de Estado e de Governo e aos responsáveis das várias religiões, os meus ardentes votos de paz, que acompanho com a minha oração a fim de que cessem as guerras, os conflitos e os inúmeros sofrimentos provocados quer pela mão do homem quer por velhas e novas epidemias e pelos efeitos devastadores das calamidades naturais. Rezo de modo particular para que, respondendo à nossa vocação comum de colaborar com Deus e com todas as pessoas de boa vontade para a promoção da concórdia e da paz no mundo, saibamos resistir à tentação de nos comportarmos de forma não digna da nossa humanidade. Já, na minha mensagem para o 1º de Janeiro passado, fazia notar que «o anseio duma vida plena (…) contém uma aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à comunhão com os outros, em quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas irmãos que devemos acolher e abraçar».[1] Sendo o homem um ser relacional, destinado a realizar-se no contexto de relações interpessoais inspiradas pela justiça e a caridade, é fundamental para o seu desenvolvimento que sejam reconhecidas e respeitadas a sua dignidade, liberdade e autonomia. Infelizmente, o flagelo generalizado da exploração do homem pelo homem fere gravemente a vida de comunhão e a vocação a tecer relações interpessoais marcadas pelo respeito, a justiça e a caridade. Tal fenômeno abominável, que leva a espezinhar os direitos fundamentais do outro e a aniquilar a sua liberdade e dignidade, assume múltiplas formas sobre as quais desejo deter-me, brevemente, para que, à luz da Palavra de Deus, possamos considerar todos os homens, «já não escravos, mas irmãos».
À escuta do projeto de Deus para a humanidade
2. O tema, que escolhi para esta mensagem, inspira-se na Carta de São Paulo a Filemon; nela, o Apóstolo pede ao seu colaborador para acolher Onésimo, que antes era escravo do próprio Filemon, mas agora tornou-se cristão, merecendo por isso mesmo, segundo Paulo, ser considerado um irmão. Escreve o Apóstolo dos gentios: «Ele foi afastado por breve tempo, a fim de que o recebas para sempre, não já como escravo, mas muito mais do que um escravo, como irmão querido» (Flm 15-16). Tornando-se cristão, Onésimo passou a ser irmão de Filemon. Deste modo, a conversão a Cristo, o início duma vida de discipulado em Cristo constitui um novo nascimento (cf. 2 Cor 5, 17; 1 Ped 1, 3), que regenera a fraternidade como vínculo fundante da vida familiar e alicerce da vida social.
Lemos, no livro do Genesis (cf. 1, 27-28), que Deus criou o ser humano como homem e mulher e abençoou-os para que crescessem e se multiplicassem: a Adão e Eva, fê-los pais, que, no cumprimento da bênção de Deus para ser fecundos e multiplicar-se, geraram a primeira fraternidade: a de Caim e Abel. Saídos do mesmo ventre, Caim e Abel são irmãos e, por isso, têm a mesma origem, natureza e dignidade de seus pais, criados à imagem e semelhança de Deus.
Mas, apesar de os irmãos estarem ligados por nascimento e possuírem a mesma natureza e a mesma dignidade, a fraternidade exprime também a multiplicidade e a diferença que existe entre eles. Por conseguinte, como irmãos e irmãs, todas as pessoas estão, por natureza, relacionadas umas com as outras, cada qual com a própria especificidade e todas partilhando a mesma origem, natureza e dignidade. Em virtude disso, a fraternidade constitui a rede de relações fundamentais para a construção da família humana criada por Deus.
Infelizmente, entre a primeira criação narrada no livro do Genesis e o novo nascimento em Cristo – que torna, os crentes, irmãos e irmãs do «primogênito de muitos irmãos» (Rom 8, 29) –, existe a realidade negativa do pecado, que interrompe tantas vezes a nossa fraternidade de criaturas e deforma continuamente a beleza e nobreza de sermos irmãos e irmãs da mesma família humana. Caim não só não suporta o seu irmão Abel, mas mata-o por inveja, cometendo o primeiro fratricídio. «O assassinato de Abel por Caim atesta, tragicamente, a rejeição radical da vocação a ser irmãos. A sua história (cf. Gen 4, 1-16) põe em evidência o difícil dever, a que todos os homens são chamados, de viver juntos, cuidando uns dos outros».[2]
Também na história da família de Noé e seus filhos (cf. Gen 9, 18-27), é a falta de piedade de Cam para com seu pai, Noé, que impele este a amaldiçoar o filho irreverente e a abençoar os outros que o tinham honrado, dando assim lugar a uma desigualdade entre irmãos nascidos do mesmo ventre.
Na narração das origens da família humana, o pecado de afastamento de Deus, da figura do pai e do irmão torna-se uma expressão da recusa da comunhão e traduz-se na cultura da servidão (cf. Gen 9, 25-27), com as consequências daí resultantes que se prolongam de geração em geração: rejeição do outro, maus-tratos às pessoas, violação da dignidade e dos direitos fundamentais, institucionalização de desigualdades. Daqui se vê a necessidade duma conversão contínua à Aliança levada à perfeição pela oblação de Cristo na cruz, confiantes de que, «onde abundou o pecado, superabundou a graça (…) por Jesus Cristo» (Rom 5, 20.21). Ele, o Filho amado (cf. Mt 3, 17), veio para revelar o amor do Pai pela humanidade. Todo aquele que escuta o Evangelho e acolhe o seu apelo à conversão, torna-se, para Jesus, «irmão, irmã e mãe» (Mt 12, 50) e, consequentemente, filho adotivo de seu Pai (cf. Ef 1, 5).
No entanto, os seres humanos não se tornam cristãos, filhos do Pai e irmãos em Cristo por imposição divina, isto é, sem o exercício da liberdade pessoal, sem se converterem livremente a Cristo. Ser filho de Deus requer que primeiro se abrace o imperativo da conversão: «Convertei-vos – dizia Pedro no dia de Pentecostes – e peça cada um o batismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados; recebereis, então, o dom do Espírito Santo» (At 2, 38). Todos aqueles que responderam com a fé e
a vida àquela pregação de Pedro, entraram na fraternidade da primeira comunidade cristã (cf. 1 Ped 2, 17; At 1, 15.16; 6, 3; 15, 23): judeus e gregos, escravos e homens livres (cf. 1 Cor 12, 13; Gal 3, 28), cuja diversidade de origem e estado social não diminui a dignidade de cada um, nem exclui ninguém do povo de Deus. Por isso, a comunidade cristã é o lugar da comunhão vivida no amor entre os irmãos (cf. Rom 12, 10; 1 Tes 4, 9; Heb 13, 1; 1 Ped 1, 22; 2 Ped 1, 7).
Tudo isto prova como a Boa Nova de Jesus Cristo – por meio de Quem Deus «renova todas as coisas» (Ap 21, 5)[3] – é capaz de redimir também as relações entre os homens, incluindo a relação entre um escravo e o seu senhor, pondo em evidência aquilo que ambos têm em comum: a filiação adotiva e o vínculo de fraternidade em Cristo. O próprio Jesus disse aos seus discípulos: «Já não vos chamo servos, visto que um servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai» (Jo 15, 15).
As múltiplas faces da escravatura, ontem e hoje
3. Desde tempos imemoriais, as diferentes sociedades humanas conhecem o fenómeno da sujeição do homem pelo homem. Houve períodos na história da humanidade em que a instituição da escravatura era geralmente admitida e regulamentada pelo direito. Este estabelecia quem nascia livre e quem, pelo contrário, nascia escravo, bem como as condições em que a pessoa, nascida livre, podia perder a sua liberdade ou recuperá-la. Por outras palavras, o próprio direito admitia que algumas pessoas podiam ou deviam ser consideradas propriedade de outra pessoa, a qual podia dispor livremente delas; o escravo podia ser vendido e comprado, cedido e adquirido como se fosse uma mercadoria qualquer.
Hoje, na sequência duma evolução positiva da consciência da humanidade, a escravatura – delito de lesa humanidade[4] – foi formalmente abolida no mundo. O direito de cada pessoa não ser mantida em estado de escravidão ou servidão foi reconhecido, no direito internacional, como norma inderrogável.
Mas, apesar de a comunidade internacional ter adotado numerosos acordos para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este fenômeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura.
Penso em tantos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico ao trabalho agrícola, da indústria manufatureira à mineração, tanto nos países onde a legislação do trabalho não está conforme às normas e padrões mínimos internacionais, como – ainda que ilegalmente – naqueles cuja legislação protege o trabalhador.
Penso também nas condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do seu trajeto dramático, padecem a fome, são privados da liberdade, despojados dos seus bens ou abusados física e sexualmente. Penso em tantos deles que, chegados ao destino depois duma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam
detidos em condições às vezes desumanas. Penso em tantos deles que diversas circunstâncias sociais, políticas e econômicas impelem a passar à clandestinidade, e naqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições indignas, especialmente quando as legislações nacionais criam ou permitem uma dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho como, por exemplo, condicionando a legalidade da estadia ao contrato de trabalho... Sim! Penso no «trabalho escravo».
Penso nas pessoas obrigadas a prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, e nas escravas e escravos sexuais; nas mulheres forçadas a casar-se, quer as que são vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por morte do marido, sem que tenham o direito de dar ou não o próprio consentimento.
Não posso deixar de pensar a quantos, menores e adultos, são objeto de tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir de pedintes, para atividades ilegais como a produção ou venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adoção internacional.
Penso, enfim, em todos aqueles que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus objetivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais. Muitos deles desaparecem, alguns são vendidos várias vezes, torturados, mutilados ou mortos.
Algumas causas profundas da escravatura
4. Hoje como ontem, na raiz da escravatura, está uma concepção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objeto. Quando o pecado corrompe o coração do homem e o afasta do seu Criador e dos seus semelhantes, estes deixam de ser sentidos como seres de igual dignidade, como irmãos e irmãs em humanidade, passando a ser vistos como objetos. Com a força, o engano, a coação física ou psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim.
Juntamente com esta causa ontológica – a rejeição da humanidade no outro –, há outras causas que concorrem para se explicar as formas atuais de escravatura. Entre elas, penso em primeiro lugar na pobreza, no subdesenvolvimento e na exclusão, especialmente quando os três se aliam com a falta de acesso à educação ou com uma realidade caracterizada por escassas, se não mesmo inexistentes, oportunidades de emprego. Não raro, as vítimas de tráfico e servidão são pessoas que procuravam uma forma de sair da condição de pobreza extrema e, dando crédito a falsas promessas de trabalho, caíram nas mãos das redes criminosas que gerem o tráfico de seres humanos. Estas redes utilizam habilmente as tecnologias informáticas modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do mundo.
Entre as causas da escravatura, deve ser incluída também a corrupção daqueles que, para enriquecer, estão dispostos a tudo. Na realidade, a servidão e o tráfico das
pessoas humanas requerem uma cumplicidade que muitas vezes passa através da corrupção dos intermediários, de alguns membros das forças da polícia, de outros atores do Estado ou de variadas instituições, civis e militares. «Isto acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro, e não o homem, a pessoa humana. Sim, no centro de cada sistema social ou econômico, deve estar a pessoa, imagem de Deus, criada para que fosse o dominador do universo. Quando a pessoa é deslocada e chega o deus dinheiro, dá-se esta inversão de valores».[5]
Outras causas da escravidão são os conflitos armados, as violências, a criminalidade e o terrorismo. Há inúmeras pessoas raptadas para ser vendidas, recrutadas como combatentes ou exploradas sexualmente, enquanto outras se vêem obrigadas a emigrar, deixando tudo o que possuem: terra, casa, propriedades e mesmo os familiares. Estas últimas, impelidas a procurar uma alternativa a tão terríveis condições, mesmo à custa da própria dignidade e sobrevivência, arriscam-se assim a entrar naquele círculo vicioso que as torna presa da miséria, da corrupção e das suas consequências perniciosas.
Um compromisso comum para vencer a escravatura
5. Quando se observa o fenômeno do comércio de pessoas, do tráfico ilegal de migrantes e de outras faces conhecidas e desconhecidas da escravidão, fica-se frequentemente com a impressão de que o mesmo tem lugar no meio da indiferença geral.
Sem negar que isto seja, infelizmente, verdade em grande parte, apraz-me mencionar o enorme trabalho que muitas congregações religiosas, especialmente femininas, realizam silenciosamente, há tantos anos, a favor das vítimas. Tais institutos actuam em contextos difíceis, por vezes dominados pela violência, procurando quebrar as cadeias invisíveis que mantêm as vítimas presas aos seus traficantes e exploradores; cadeias, cujos elos são feitos não só de subtis mecanismos psicológicos que tornam as vítimas dependentes dos seus algozes, através de chantagem e ameaça a eles e aos seus entes queridos, mas também através de meios materiais, como a apreensão dos documentos de identidade e a violência física. A atividade das congregações religiosas está articulada a três níveis principais: o socorro às vítimas, a sua reabilitação sob o perfil psicológico e formativo e a sua reintegração na sociedade de destino ou de origem.
Este trabalho imenso, que requer coragem, paciência e perseverança, merece o aplauso da Igreja inteira e da sociedade. Naturalmente o aplauso, por si só, não basta para se pôr termo ao flagelo da exploração da pessoa humana. Faz falta também um tríplice empenho a nível institucional: prevenção, proteção das vítimas e ação judicial contra os responsáveis. Além disso, assim como as organizações criminosas usam redes globais para alcançar os seus objetivos, assim também a ação para vencer este fenômeno requer um esforço comum e igualmente global por parte dos diferentes atores que compõem a sociedade.
Os Estados deveriam vigiar por que as respectivas legislações nacionais sobre as migrações, o trabalho, as adoções, a transferência das empresas e a comercialização de produtos feitos por meio da exploração do trabalho sejam efetivamente respeitadoras da dignidade da pessoa. São necessárias leis justas, centradas na pessoa humana, que defendam os seus direitos fundamentais e, se violados, os recuperem reabilitando quem é vítima e assegurando a sua incolumidade, como são necessários também mecanismos eficazes de controle da correta aplicação de tais normas, que não deixem espaço à corrupção e à impunidade. É preciso ainda que seja reconhecido o papel da mulher na sociedade, intervindo também no plano cultural e da comunicação para se obter os resultados esperados.
As organizações intergovernamentais são chamadas, no respeito pelo princípio da subsidiariedade, a implementar iniciativas coordenadas para combater as redes transnacionais do crime organizado que gerem o mercado de pessoas humanas e o tráfico ilegal dos migrantes. Torna-se necessária uma cooperação a vários níveis, que englobe as instituições nacionais e internacionais, bem como as organizações da sociedade civil e do mundo empresarial. Com efeito, as empresas[6] têm o dever não só de garantir aos seus empregados condições de trabalho dignas e salários adequados, mas também de vigiar por que não tenham lugar, nas cadeias de distribuição, formas de servidão ou tráfico de pessoas humanas. A par da responsabilidade social da empresa, aparece depois a responsabilidade social do consumidor. Na realidade, cada pessoa deveria ter consciência de que «comprar é sempre um ato moral, para além de econômico».[7]
As organizações da sociedade civil, por sua vez, têm o dever de sensibilizar e estimular as consciências sobre os passos necessários para combater e erradicar a cultura da servidão.
Nos últimos anos, a Santa Sé, acolhendo o grito de sofrimento das vítimas do tráfico e a voz das congregações religiosas que as acompanham rumo à libertação, multiplicou os apelos à comunidade internacional pedindo que os diversos atores unam os seus esforços e cooperem para acabar com este flagelo.[8] Além disso, foram organizados alguns encontros com a finalidade de dar visibilidade ao fenômeno do tráfico de pessoas e facilitar a colaboração entre os diferentes atores, incluindo peritos do mundo acadêmico e das organizações internacionais, forças da polícia dos diferentes países de origem, trânsito e destino dos migrantes, e representantes dos grupos eclesiais comprometidos em favor das vítimas. Espero que este empenho continue e se reforce nos próximos anos.
Globalizar a fraternidade,
não a escravidão nem a indiferença 6. Na sua atividade de «proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade»,[9] a Igreja não cessa de se empenhar em ações de caráter caritativo guiada pela verdade sobre o homem. Ela tem o dever de mostrar a todos o caminho da conversão, que induz a voltar os olhos para o próximo, a ver no outro – seja ele quem for – um irmão e
uma irmã em humanidade, a reconhecer a sua dignidade intrínseca na verdade e na liberdade, como nos ensina a história de Josefina Bakhita, a Santa originária da região do Darfur, no Sudão. Raptada por traficantes de escravos e vendida a patrões desalmados desde a idade de nove anos, haveria de tornar-se, depois de dolorosas vicissitudes, «uma livre filha de Deus» mediante a fé vivida na consagração religiosa e no serviço aos outros, especialmente aos pequenos e fracos. Esta Santa, que viveu a cavalo entre os séculos XIX e XX, é também hoje testemunha exemplar de esperança[10] para as numerosas vítimas da escravatura e pode apoiar os esforços de quantos se dedicam à luta contra esta «ferida no corpo da humanidade contemporânea, uma chaga na carne de Cristo».[11]
Nesta perspectiva, desejo convidar cada um, segundo a respectiva missão e responsabilidades particulares, a realizar gestos de fraternidade a bem de quantos são mantidos em estado de servidão. Perguntemo-nos, enquanto comunidade e indivíduo, como nos sentimos interpelados quando, na vida quotidiana, nos encontramos ou lidamos com pessoas que poderiam ser vítimas do tráfico de seres humanos ou, quando temos de comprar, se escolhemos produtos que poderiam razoavelmente resultar da exploração de outras pessoas. Há alguns de nós que, por indiferença, porque distraídos com as preocupações diárias, ou por razões económicas, fecham os olhos. Outros, pelo contrário, optam por fazer algo de positivo, comprometendo-se nas associações da sociedade civil ou praticando no dia-a-dia pequenos gestos como dirigir uma palavra, trocar um cumprimento, dizer «bom dia» ou oferecer um sorriso; estes gestos, que têm imenso valor e não nos custam nada, podem dar esperança, abrir estradas, mudar a vida a uma pessoa que tateia na invisibilidade e mudar também a nossa vida face a esta realidade.
Temos de reconhecer que estamos perante um fenômeno mundial que excede as competências de uma única comunidade ou nação. Para vencê-lo, é preciso uma mobilização de dimensões comparáveis às do próprio fenômeno. Por esta razão, lanço um veemente apelo a todos os homens e mulheres de boa vontade e a quantos, mesmo nos mais altos níveis das instituições, são testemunhas, de perto ou de longe, do flagelo da escravidão contemporânea, para que não se tornem cúmplices deste mal, não afastem o olhar à vista dos sofrimentos de seus irmãos e irmãs em humanidade, privados de liberdade e dignidade, mas tenham a coragem de tocar a carne sofredora de Cristo,[12] o Qual Se torna visível através dos rostos inumeráveis daqueles a quem Ele mesmo chama os «meus irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40.45).
Sabemos que Deus perguntará a cada um de nós: Que fizeste do teu irmão? (cf. Gen 4, 9-10). A globalização da indiferença, que hoje pesa sobre a vida de tantas irmãs e de tantos irmãos, requer de todos nós que nos façamos artífices duma globalização da solidariedade e da fraternidade que possa devolver-lhes a esperança e levá-los a retomar, com coragem, o caminho através dos problemas do nosso tempo e as novas perspectivas que este traz consigo e que Deus coloca nas nossas mãos.
Vaticano, 8 de Dezembro de 2014.
FRANCISCUS
NOTAS
[1] N. 1. [2] Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2014, 2. [3] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 11. [4] Cf. Discurso à Delegação internacional da Associação de Direito Penal (23 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/X/2014), 9. [5] Discurso aos participantes no Encontro mundial dos Movimentos Populares (28 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 06/XI/2014), 9. [6] Cf. Pontifício Conselho «Justiça e Paz», La vocazione del leader d’impresa. Una riflessione (Milão e Roma, 2013). [7] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 66. [8] Cf. Mensagem ao Senhor Guy Rydes, Director-Geral da Organização Internacional do Trabalho, por ocasião da 103ª sessão da Conferência da O.I.T. (22 de Maio de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 05/VI/2014), 7. [9] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 5. [10] «Mediante o conhecimento desta esperança, ela estava “redimida”, já não se sentia escrava, mas uma livre filha de Deus. Entendia aquilo que Paulo queria dizer quando lembrava aos Efésios que, antes, estavam sem esperança e sem Deus no mundo: sem esperança porque sem Deus» ( Bento XVI, Carta enc. Spe salvi, 3). [11] Discurso aos participantes na II Conferência Internacional « Combating Human Trafficking: Church and Law Enforcement in partnership» (10 de Abril de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 17/IV/2014), 8; cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 270. [12] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 24; 270.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Quando a Igreja vai sair do armário?


Parece não haver dúvidas para o mundo que a Igreja está no armário. Trancou-se por dentro, e se recusa a abrir a porta, ainda que seja por um breve tempo para diminuir o cheiro de mofo acumulado por séculos.
De dentro do armário, todavia, ela julga o mundo: vendo-o por uma pequena fresta de luz. Desta pequena fresta, ela supõe compreender toda a complexidade da realidade contemporânea, mesmo enxergando apenas uma parte muito pequena e limitada.
 Quando por essa fresta de luz entra um ar de qualquer de novidade, a Igreja esforça-se por diminuir ainda mais esta comunicação com o mundo exterior.
Assim, enquanto o mundo de fora busca se iluminar, a parte de dentro do armário fica cada vez mais escura. E mesmo no meio de uma densa escuridão, quase sempre geradora de apatia e medo, a Igreja institucional continua a repetir uma visão histórica determinada e particularista, mas que sob a ótica da escuridão quer apresentar-se como algo eterno, uma vez que “no escuro todos os gatos são pardos”.
Há, pois, uma confusão de tipo lógico entre: universal e particular, interior e exterior. Em suma, uma visão turva entre: temporal e eterno. Aquilo que é meramente transitório e particular é concebido como universal e perene.
Veja-se, como exemplo desta visão turva, o apego exagerado pela Liturgia, pelos ritos e cerimônias. Isto se verifica muitas vezes nas vozes que se levantaram e ainda se levantam contra o aggiornamento do Concilio Vaticano II.
 Ora, mesmo nos movimentos aparentemente em sintonia com as novas formas de evangelização,particularmente a Renovação Carismática Católica, nutrem um apego exacerbado às antigas formas de Liturgia.
Com efeito, o cristianismo midiático dos carismáticos é uma construção híbrida, típica da mentalidade atual, pois se a forma é pop, o conteúdo é tradicionalista: por fora novo, por dentro velho.
 Alguns reacionários vestem-se de antiguidades, mas no conjunto mais amplo da Igreja institucional nem todos são assim. Trata-se de uma estratégia assaz dissimulada: vestes novas para um corpo doutrinal velho. Em uma época como a nossa, na qual a beleza e a juventude tornaram-se uma obcessão estética social difusa, apresentar algo velho não faria muito sucesso.
Logo, ser preciso adotar uma face jovial e “antenada”. Pode-se participar de um rito antigo, mas haverá um recado na rede social: “#partiumissaemlatim”.
Ah, o Latim! Se pudessem, isto é visível, os carismáticos fariam do latim a língua oficial do movimento, alçando-o de novo como única língua capaz de comunicar o sagrado. Sim, aquela língua considerada divina e pura: a língua litúrgica por excelência.
 Porém, poucos deles sabem que esta língua tão venerada, a única considerada digna da melhor liturgia romana, desde o século XVI, foi diagnosticada pelos renascentistas como uma língua de/e para “homens gagos”. Digna não do ofício divino, mas de homens “bárbaros”.
Já bem sabiam os renascentistas que não há uma “língua divina”, imaculada, pura; e que se presta apenas à Liturgia. As línguas não visam satisfazer liturgias, nem tampouco podem ser mantidas vivas mesmo após sua morte.
Defender o latim como única língua litúrgica significa se apegar em uma artificialidade, reduzindo as capacidades linguísticas à mera instrumentalidade de um tradicionalismo caduco. Toda língua é factível, relativa, impura e desobediente.
 Urdida na trama no tempo, tecida na história e guardando a própria historicidade, a língua é o vestígio mais vivo das construções hodiernas comuns. Por isso, conceber uma língua litúrgica pura nada mais é que querer fazer preponderar os particularismos como universalidade total.
 É tentar extrair razoabilidade do absurdo. Tal encontra-se embebido de violência, visto ser propriamente violento todo gesto que torna absoluto o relativo. Uma língua é tão sacra como qualquer outra, pois todas guardam a capacidade de comunicar, a capacidade de estabelecer afetos e liames comuns, e sem estes, não há religiosidade possível.
 Parece pouco crível que, simplesmente por realizar ritos litúrgicos em uma língua morta, o rito se torne mais solene e sacro. Longe da língua comum, o rito litúrgico se torna apenas exótico. Isto é um prato cheio para os carismáticos midiáticos, pois quanto mais híbrido e exótico, mais solúvel na cultura pop.
Mas qual a relação de toda essa digressão sobre língua e litúrgica com o propósito deste texto, que objetiva tratar sobre a possibilidade da Igreja sair do armário?
Ora, não é de se admirar que os mais reacionários no campo da moral sexual sejam justamente os mais apegados aos ritos litúrgicos antigos. Aqueles que defendem a volta do latim litúrgico são os mais misóginos, maiores cultivadores de toda fobia de cunho sexual.
Mas, como poderia ser diferente, se o primeiro e mais arcano armário da Igreja Institucional é o armário da imposição do celibato. De dentro de seus armários (aqui se pressupõe, em uma mistura de “ingenuidade” e ironia que todos os padres são celibatários) aqueles que abriram mão do campo sexual julgam a sexualidade?
Beirando o absurdo e o ridículo, a condição da Igreja Institucional, ao tentar impor uma visão tradicionalista e retrógrada da sexualidade, é tal como se pedíssemos a um amigo vegetariano que nos recomendasse o melhor restaurante de carnes da cidade.
Nadadores falam de natação, psicólogos de psicologia, administradores de administração, mas no caso da Igreja é como se um Eunuco ditasse ao mundo as regras daquilo que ele não prática, apenas observa. Não se pergunta ao agricultor sobre as melhores condições para a pesca.
 Com efeito, é pouco crível que uma senhora possa aconselhar-se com seu pároco sobre como prolongar as horas de prazer com seu esposo. Aquela senhora sabe, ou pelo menos supõe que padres não possuem vida sexual ativa.
Ora, o espaço do armário é pequeno, lá não cabe vida a dois, mas apenas um.
Todavia, o armário da Igreja é grande e se chama Tradicionalismo: às vezes pudico, outras oportunista. Dentro desse armário maior cabem outros armários menores.
 Aquele que está no armário do tradicionalismo litúrgico, estar ao mesmo tempo no armário da vanguarda do atraso das questões ligadas à sexualidade. Um armário dentro de outro armário: hipérbole do medo e do fechamento, tal nos apresenta a Igreja Institucional.
Não é de hoje, que no seio da hierarquia eclesiástica, os mais reacionários são aqueles que defendem uma liturgia impecável: obsessivos por liturgia, pouco importando outras dimensões. Para estes mais vale o rito litúrgico que a prática da caridade. Se no mundo desencantado da sociedade contemporânea há um rito sem mito, a Igreja caminha na via do rito pelo rito.
O apego excessivo e exclusivista à liturgia produz uma confusão que faz dos particularismos algo universal. Esta confusão de tipo lógico é a mesma daqueles que defendem a moral sexual da Igreja como única e universal, válida sempre e para todos.
 Quem pensa que a missa em Latim é a norma imprescritível da Liturgia, também pensa que a heteronormatividade é a lei sexual imprescritível. Norma litúrgica e norma sexual se confundem. Se nada pode ser modificado na Liturgia, nada pode ser modificado na moral sexual.
 Ora, sempre foi prática da Igreja, ao realizar concílios, não construir novas práticas, mas sim referendar aquelas antigas e usuais: os concílios quase sempre discutiram para não mudar.
Tal não ocorreu com o Concílio Vaticano II. De fato, após o Vaticano II, a Igreja não saiu do armário, porém abriu um pouco mais a fresta, e pode enxergar melhor o mundo. Porém, é preciso reconhecer, com sinceridade, que boa parte dos avanços aí estabelecidos ficou no solo das discussões litúrgicas. Segue-se que após
o Vaticano II, no campo das questões da sexualidade, quase nada se modificou ou foi discutido com autêntico interesse. Por isso, as atuais vazias discussões dos apelos litúrgicos tendem a ser a linha de frente daqueles setores mais reacionários. De dentro do armário do tradicionalismo litúrgico busca-se impedir que outros armários sejam abertos.
Porém, era sabido entre os antigos historiadores latinos que quanto maior o exagero das instituições em suas cerimônias, quanto maior o apelo ritualístico, maior o grau de corrupção em que elas se degeneram. Assim, os exagerados virtuosismos litúrgicos, que vão desde os preciosismos nos paramentos ao modo como se deve pegar no turíbulo, revelam uma crise de identidade acentuada, gerada por uma hemorragia não contida. Ora, sendo a liturgia o aspecto mais visível da realidade da Igreja institucional, não há melhor meio para aplacar um golpe hemorrágico do que se prender ao aspecto mais externo e de maior visibilidade. Todavia, a identidade não está restrita só aos aspectos vivíveis, ao rosto, mas também aos atos, e não há identidade sem atos de reconhecimento.
 Nesse sentido, a lógica do armário impede qualquer reconhecimento, pois como se pode reconhecer escondendo-se?
Em uma inquietação difusa entre sair e ficar no armário, após o Concílio Vaticano II, a Igreja opta na maioria das vezes em continuar no armário. De dentro do armário, a Igreja não pode operar atos de reconhecimento, pois sua visão limitada da realidade impede uma visão do diverso, e sem está não possibilidade de qualquer reconhecimento.
 Daí restando apenas as idiossincrasias, típicas de um lógica de poder perversa que não reconhece nada que escape ao seu modelo pré-estabelecido. De dentro do armário, não há diverso, nem reconhecimento. Desse modo, antes de qualquer coisa, é preciso romper o armário do Tradicionalismo-Cerimonialismo, a fim de que o importante não seja com quem se vai pra cama, nem o que se faz nela, mas sim se há uma cama, se há alguém com quem se possa partilha o afeto e a sexualidade.
 Ora, não foi contra toda carência que o Cristo se definiu: “Eu vim para que todos tenham vida, que todos tenham vida plenamente”, (Jo, 10, 10). Talvez os que se deixam impor ao celibato esquecerem-se dessa pequena, porém profunda frase. De fato, não possuí vida plena, quem recusa, ainda que por amor à vocação, uma sexualidade ativa e sadia. Enquanto a Igreja não sair do armário do tradicionalismo e do celibato imposto, não se pode esperar mudanças na sua visão da sexualidade: nada melhor do que aí estar poderá aparecer.
 Quem se fechou à sexualidade não pode compreender satisfatoriamente a dimensão sexual em suas múltiplas facetas: quer hetero, quer homossexual ou bissexual.
Daí cabe indagar: poderá Francisco, este Quixote do Vaticano, batalhar contra os “moinhos de vento” do falso moralismo sexual, da secular misoginia sacerdotal, em suma contra a homofobia e demais formas de preconceitos alicerçados na identidade de gênero e nas diversas práticas sexuais? Se no clássico de Cervantes, o engenhoso fidalgo era derrotado por gigantes que nada mais eram que moinhos de eventos, veja-se a hercúlea empresa de Francisco: debelar-se contra gigantes de fato. Não apenas imaginados,porém cruelmente reais.
(Fran de Oliveira Alavina)

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Cristianismo Ostentação


Ostentar: eis a máxima a ser seguida por toda e qualquer existência, que se queira integrada na atualidade. Ostenta-se tudo, todos ostentam: eu ostento, tu ostentas, nós ostentamos. Tudo passa, mas a ostentação fica. “Céus e terras passarão”, mas as ostentações não passarão: proclama a cínica Boa Nova do presente. Perdura, a ostentação, não como simples perenidade, porém perdura na caducidade. Ostentar é um ato efêmero, como quase tudo no horizonte cultural contemporâneo, mas sua efemeridade dobra toda perenidade arrogante. A ostentação perdura por não se apresentar sempre de modo único e singular, como algo único e sem repetição, pelo contrário perdura exigindo uma repetição incomensurável. Resultando disso um rito, uma liturgia da cópia. O ato de ostentação se finda rapidamente, ele não deve durar mais que o espaço entre sua epifania e o imediato reconhecimento social. Logo, a ostentação precisa ser repetida infinitamente, perdurando, portanto, na repetição. Isto é, nada de novidades totais, singularidades impossíveis de se tornarem cópias, cabem apenas pequenas mudanças que não alterem a forma.
Ora, a forma da ostentação é única, ela não faz qualquer discriminação de cor, de classe social (todos são consumidores, portanto ostentadores, o que se altera é apenas a quantidade e os “bens” consumidos), de nacionalidade ou de Religião. No caso do espaço simbólico do sacro, a forma de ostentação é a mesma, ainda que nossos credos destoem. Existindo uma forma unívoca, a aparência é a mesma, igual para todos, por conseguinte todos estão irmanados e unidos. Trata-se de um ecumenismo já realizado, perversamente realizado: o ecumenismo da ostentação. Podemos ostentar nossos diferentes credos juntos, posto que unidos pela mesma forma de ostentação, ainda que nos odiemos mutuamente. Em um mundo, no qual todo “cristão” é cotidianamente um potencial apóstata da sua fé, o “amai-vos uns aos outros” cedeu lugar ao “ostentai-vos uns aos outros”. Nada de promessa de vida em plenitude, mas sim ostentação absoluta, completa. Ostenta-se tudo: em primeiro lugar, a própria vida, a vida privada, os afetos e os respectivos objetos de afeto (estes ostentados como prêmios, principalmente quando se trata de namorado (a) ou filhos), ostenta-se os infinitos acontecimentos do cotidiano, pra onde se viaja, onde se está, o que se come ou bebe, os livros e as leituras feitas, o saber adquirido, a própria suposta sagacidade, ostenta-se até mesmo a espiritualidade (ainda que esta nunca deixe de ser interioridade, por isso não se adequando completamente à visibilidade total), ostenta-se a própria fé. Contudo, toda ostentação se apresenta como imagem constituída dos seguintes elementos: devem ser atrativas, por isso devem ser belas para tornar extremamente visível a felicidade. Depois de tempos da felicidade imposta pela globalização do consumo, chegou o tempo da ostentação da felicidade. Ostentar: eis o novo mandamento, ao qual o mundo nos impele incondicionalmente. Ostentai sempre e mais, fazei de tudo na vida, algo para ser ostentado. Ostenta até mesmo a tua dor, se não é possível ser feliz sem ostentar a própria felicidade, também não é possível sofrer sem se ostentar as próprias mazelas.
Ao lado deste caráter pervertido, que atinge o espaço do sagrado, isto é a ostentação do sacro e da fé, se acresce outro aspecto: a relação tragicamente dinâmica entre consumo e ostentação. Os objetos de consumo não são feitos apenas para “simplesmente” serem consumidos. O consumir em si mesmo perdeu seu sentido, não possui mais escopo, se é que um dia o teve. Está ultrapassada a barreira do consumir pelo consumir. O real sentido do consumo, hoje, encontra-se na ostentação: consume-se para se ostentar. Qual a graça de consumir anonimamente? Sem a maior visibilidade possível? Sem a paranóia imagética? Esta paranóia, ao mesmo tempo sádica e masoquista, garante o dissimuladoassentimento social, e sem este consumir não apresenta o menor prazer. Ademais, fora do signo do prazer e da excitação horizontal tudo perde sentido na atualidade. Se a máxima é ostentar, não se deve olvidar que, além disso, vive-se sob o império do poder difuso das imagens. Isto é, no reino do imagético onde nada é, mas tudo apenas parece. Assim, a excitação social se volta diretamente ao visível, ao puro aparecer, dissolvendo qualquer alteração harmoniosa entre os outros sentidos e a sensibilidade. Entre os objetos e suas respectivas imagens não há mais limites ou diferenças. As coisas não são o que são, mas o que parecem, não são elas mesmas, são suas imagens apenas: “assim é, se lhe parece”. As coisas são e estão à medida que são puras manifestações visíveis, e quanto maior a visibilidade, maior o suposto grau de realidade. Não sem motivo, nos mais diversos setores e espaços sociais, todos, de modo beligerante, buscam sempre visibilidade. Por conseguinte, a ostentação nada mais é que a visibilidade hiperbólica, extremada e violenta: a imagem que se coloca no lugar das coias mesmas, para ser vista repetidamente, incessantemente, pelo maior número possível de sujeitos. Nisso está o mecanismo da selfie, que nem de longe pode ser explicita pela aproximação ao clássico elemento estético do auto-retrato.
Desse modo, é possível afirmar que em nosso horizonte cultural todas as coisas estão sujeitas a uma violência primeira: a violência da visibilidade, da imagem ostensiva, violência que possui como fonte o poder difuso do imagético hiperbólico. Uma visibilidade cujo escopo é apenas mais visibilidade. As imagens, toda aparição, toda manifestação que se queira ampla e visível é, portanto, potencialmente violenta, ainda que não seja esta a finalidade. Pois, tudo que se torna visível, encontra-se manifesto na forma da visibilidade do consumo, ou seja, como ostentação. Além das imagens não há mais um substrato concreto, um conteúdo, uma interioridade. Hoje não há nada além da imagem, agora o imagético é o princípio e o fim, o Alfa e Ômega. Tudo nasce sob o poder do imagético, nele permanece e morre, para tornar a nascer de novo, pois a ressurreição dos novos tempos tem por rito litúrgico: o remake. Tudo que se apresenta como cópia, tende a não desaparecer, uma vez que susceptível de se reproduzir infindavelmente, logo todo remake surge como imagem do ressuscitado, como signo de vitória ante a caducidade, a morte e o desaparecimento. A cópia e a repetição assim, não apenas prometem, mas garantem a própria vida eterna. Por consequência, o cristianismo ostentação nada mais é que o remake, a cópia da cópia, a repetição da perversa ordem que prevalece, a adequação cínica, posto que assumidamente sem subterfúgios, ao status quo da repetição e da cópia como novos supostos liames sociais. Apenas se repete sob o signo do “sacro”, aquilo que é feito no campo do “profano”. Portanto, o imagético desaloja o campo do onírico, do verossímil, do simbólico, do prazeroso-passional, apresentando-se como o próprio campo estético por excelência, corroendo a diferença entre sujeito e objeto.
A trágica relação dinâmica entre ostentar e consumir perverteu-se de tal modo, que não é mais possível diferenciar os dois. Um sustenta o outro: toda ato de ostentação na atualidade é um ato consumista, e, por sua vez, todo consumismo é feito para ser ostentado. Alcançando âmbitos impensáveis, a própria existência pessoal só é reconhecida atualmente, se inserida em ritos de consumo. A identidade é formada pelo consumir, mas todo consumir é ostentar, e todo ostentar é visibilidade exagerada e violenta. Logo, nascem subjetividades que na própria formação de seus princípios de identidade são assumidamente violentas, egoístas, narcísicas e insensíveis. Não reconhece nada que lhes seja outro, que não esteja sob a forma única e mesma da ostentação
Assim, nem objetividade, nem subjetividade, nem dentro, nem fora, sem verticalidades: há apenas as horizontalidades das aparências e das imagens. Se todo “cristão” é um apóstata em potencial, em virtude da ordem econômica perversa na qual se insere, também é atrativamente convidado a ser mais um sociopata da imagem, uma vez que é convidado a reproduzir, cinicamente ou “inocentemente”, a visibilidade ostensiva. Sociopatas da imagem são aqueles que não conseguem existir sem tornar maximamente visível a própria existência. Esta em um modo muito próprio de sentir, pois se trata de um sentir patológico, é apenas uma imagem: “ser é ser percebido”. Portanto, para o sociopata da imagem tudo está reduzido à visibilidade. Porém, não se trata de uma visibilidade qualquer, mas sim de uma visibilidade extremada. Quanto mais cresce o alcance das redes sociais, desaparecendo os espaços coletivos concretos de convivência, maior o número de sociopatas da imagem. Pois, a lógica da ostentação tem como hábitat natural as redes sociais e os mass medias. Todos querem tomar parte no espetáculo, nem que lhe caiba o papel de figuração ou do ridículo, pois ficar de fora do espetáculo significa o fracasso social. Por conseguinte, a fim de evitar o fracasso, a maior parte do cristianismo ocidental resolveu unir fé e ostentação.
Na lógica da ostentação são consideradas reais, depositárias de crédito e afetividade as coisas que fazem sucesso, porém, cumpre lembrar, este último só é alcançado com visibilidade, ou seja, com ostentação. Ora, para não perder espaço, o cristianismo ocidental, em seus mais diversos credos, não viu outra saída para sobreviver, ante o avanço da secularização, senão adequar-se à ostentação imperante. Estranha saída esta, que o cristianismo ocidental adotou: usar as formas mais avançadas da secularização para barrar a secularização, usar as formas mais avançadas do “profano” para comunicar o “sagrado”. Assumindo esta alternativa, não basta ser cristão, é preciso apresentar uma imagem condizente com o credo. Não só isso, é preciso atrair a maior visibilidade possível, logo é preciso ostentar a imagem que se quer incessantemente visível. Porém, como afirmado anteriormente, toda imagem na atualidade é potencialmente violenta, logo o cristão que aderiu à lógica da ostentação, é, por princípio violento, e uma vez submetido à ostentação, torna-se um fundamentalista inveterado, pois traz para o reino do imagético algo que lhe é estranho: a afirmação da posse do verdadeiro, o monopólio da verdade. Ou seja, o caráter de Ser que não se coaduna com o caráter de pura Aparência do imagético. Apresenta-se, pois, no caso do cristianismo ostentação uma tensão no âmbito do reino do imagético. Uma tensão já bastante discutida na tradição cultural do ocidente: a tensão entre Ser e Aparecer, Essência e Aparência, entre a realidade das coisas e suas respectivas imagens.
Adequado á ostentação, o homem religioso cristão ocidental não quer se desfazer de suas “verdades”, daquilo que para ele constitui o seu ser mais essencial. Porém, no reino das imagens, da pura aparência, noções como verdade e essência inexistem, perderam sentido de realidade, posto que: “assim é, se lhe parece”. Na visibilidade ostensiva midiática não são possíveis sinceros e honestos anúncios de verdade, promessas de um Reino divino, profecias ou messianismos. Não há nem messias, nem imagens de messias, pois a própria imagem, o imagético é o Messias. A imagem é o messias, posto que se instaurou um novo reino, uma nova ordem, onde não há mais disputas. Só há disputas e embates mortais onde se acredita estar de posse da verdade, e na posse da verdade não há lugar para aparências, ou se é ou não é. Todavia, no reino do imagético, no império da pura aparência não se disputa sobre a veracidade ou falsidade de algo, não se trata de ser ou não ser, mas apenas de aparecer. Não importa os desnudamentos de verdades essências, importa somente a circulação das imagens, e as imagens não arrogam para si nem veracidade, nem falsidade, pedem apenas visibilidade extremada,
ou seja, ostentação. Quanto mais imagens circulam, maior a visibilidade, quanto maior a visibilidade, maior o sucesso, e fazendo sucesso, se permanece. Ora, mais o que importa não é justamente permanecer, perdurar, alocar-se na duração da visibilidade? Não é esta, pois, a lógica inerente ao cristianismo ostentação? Quanto mais visível, quanto mais obedecer à paranoia da imagética hiperbólica, mais o credo assumido se fortalece: eis a lógica do cristianismo ostentação. Assim, a máxima de nosso tempo se estabelece sobre uma religiosidade completamente derrotada pela ordem prevalente. Ante a derrota, para evitar uma exposição ao ridículo, parece não haver outra opção. Resta apenas reproduzir, copiar, fazer remakes, seguir o modus operandi do “vencedor”. Contudo, tal completa adequação ao status quo não significa o desaparecimento da tensão apontada anteriormente. Não se pode viver arrogando-se o monopólio da verdade, assumindo o caráter de ser, no reino onde domina o imagético, o puro aparecer, a visibilidade ostensiva quem não se quer nem verdadeira, nem falsa, não se arroga portadora de nenhuma verdade ou parâmetro moral: o que importa é aparecer. Desse modo, ou se recusa o primado do ser sob o aparecer, ou não se entra completamente no reino do imagético. A porta para entrar no reino do imagético é larga, todos podem entrar, mas se pede um assentimento total. Tal reino pede de seus súditos apenas o puro parecer, ou seja, nada de se arrogar estatuto de verdade ou realidade.
Por isso, resta apenas uma indagação apelativa: Cristão, o que vais ostentar na continuidade, quando a tensão entre a ostentação e o teu credo se tornar mortalmente patente? Irás ostentar a própria morte da singularidade da mensagem outrora proclamada? Se assim for, inicia as exéquias, sem perder de vista que hoje até mesmo a morte pode ser ostentada. Sem perder de vista também que a nova ordem ao qual tu te adéquas oferece um tipo de ressurreição: aquela por meio das cópias, através do rito do remake. Contudo, uma vez aceitando-se a vida eterna da cópia, torna-te um apóstata completo da tua fé, e não mais apenas potencialmente, pois perde sentido toda busca por um cristianismo autêntico. Posto que, da autenticidade, daquilo que se impõem como integralmente original não resta espaço para cópias. Por fim, lembra-te que nos teus evangelhos é manifesto que não poderás servir a dois senhores. Escolhe, pois: ou o cristo Midiático, ou o Cristo dos Evangelhos. Não poderás permanecer para sempre sob a forma do Cristianismo Ostentação: ou se cristianiza, ou se ostenta. A manutenção dos dois significa a renuncia da própria fé. Mais que isso, Cristianismo ostentação não éAssim, nem objetividade, nem subjetividade, nem dentro, nem fora, sem verticalidades: há apenas as horizontalidades das aparências e das imagens. Se todo “cristão” é um apóstata em potencial, em virtude da ordem econômica perversa na qual se insere, também é atrativamente convidado a ser mais um sociopata da imagem, uma vez que é convidado a reproduzir, cinicamente ou “inocentemente”, a visibilidade ostensiva. Sociopatas da imagem são aqueles que não conseguem existir sem tornar maximamente visível a própria existência. Esta em um modo muito próprio de sentir, pois se trata de um sentir patológico, é apenas uma imagem: “ser é ser percebido”. Portanto, para o sociopata da imagem tudo está reduzido à visibilidade. Porém, não se trata de uma visibilidade qualquer, mas sim de uma visibilidade extremada. Quanto mais cresce o alcance das redes sociais, desaparecendo os espaços coletivos concretos de convivência, maior o número de sociopatas da imagem. Pois, a lógica da ostentação tem como hábitat natural as redes sociais e os mass medias. Todos querem tomar parte no espetáculo, nem que lhe caiba o papel de figuração ou do ridículo, pois ficar de fora do espetáculo significa o fracasso social. Por conseguinte, a fim de evitar o fracasso, a maior parte do cristianismo ocidental resolveu unir fé e ostentação.
Na lógica da ostentação são consideradas reais, depositárias de crédito e afetividade as coisas que fazem sucesso, porém, cumpre lembrar, este último só é alcançado com visibilidade, ou seja, com ostentação. Ora, para não perder espaço, o cristianismo ocidental, em seus mais diversos credos, não viu outra saída para sobreviver, ante o avanço da secularização, senão adequar-se à ostentação imperante. Estranha saída esta, que o cristianismo ocidental adotou: usar as formas mais avançadas da secularização para barrar a secularização, usar as formas mais avançadas do “profano” para comunicar o “sagrado”. Assumindo esta alternativa, não basta ser cristão, é preciso apresentar uma imagem condizente com o credo. Não só isso, é preciso atrair a maior visibilidade possível, logo é preciso ostentar a imagem que se quer incessantemente visível. Porém, como afirmado anteriormente, toda imagem na atualidade é potencialmente violenta, logo o cristão que aderiu à lógica da ostentação, é, por princípio violento, e uma vez submetido à ostentação, torna-se um fundamentalista inveterado, pois traz para o reino do imagético algo que lhe é estranho: a afirmação da posse do verdadeiro, o monopólio da verdade. Ou seja, o caráter de Ser que não se coaduna com o caráter de pura Aparência do imagético. Apresenta-se, pois, no caso do cristianismo ostentação uma tensão no âmbito do reino do imagético. Uma tensão já bastante discutida na tradição cultural do ocidente: a tensão entre Ser e Aparecer, Essência e Aparência, entre a realidade das coisas e suas respectivas imagens.
Adequado á ostentação, o homem religioso cristão ocidental não quer se desfazer de suas “verdades”, daquilo que para ele constitui o seu ser mais essencial. Porém, no reino das imagens, da pura aparência, noções como verdade e essência inexistem, perderam sentido de realidade, posto que: “assim é, se lhe parece”. Na visibilidade ostensiva midiática não são possíveis sinceros e honestos anúncios de verdade, promessas de um Reino divino, profecias ou messianismos. Não há nem messias, nem imagens de messias, pois a própria imagem, o imagético é o Messias. A imagem é o messias, posto que se instaurou um novo reino, uma nova ordem, onde não há mais disputas. Só há disputas e embates mortais onde se acredita estar de posse da verdade, e na posse da verdade não há lugar para aparências, ou se é ou não é. Todavia, no reino do imagético, no império da pura aparência não se disputa sobre a veracidade ou falsidade de algo, não se trata de ser ou não ser, mas apenas de aparecer. Não importa os desnudamentos de verdades essências, importa somente a circulação das imagens, e as imagens não arrogam para si nem veracidade, nem falsidade, pedem apenas visibilidade extremada,
ou seja, ostentação. Quanto mais imagens circulam, maior a visibilidade, quanto maior a visibilidade, maior o sucesso, e fazendo sucesso, se permanece. Ora, mais o que importa não é justamente permanecer, perdurar, alocar-se na duração da visibilidade? Não é esta, pois, a lógica inerente ao cristianismo ostentação? Quanto mais visível, quanto mais obedecer à paranoia da imagética hiperbólica, mais o credo assumido se fortalece: eis a lógica do cristianismo ostentação. Assim, a máxima de nosso tempo se estabelece sobre uma religiosidade completamente derrotada pela ordem prevalente. Ante a derrota, para evitar uma exposição ao ridículo, parece não haver outra opção. Resta apenas reproduzir, copiar, fazer remakes, seguir o modus operandi do “vencedor”. Contudo, tal completa adequação ao status quo não significa o desaparecimento da tensão apontada anteriormente. Não se pode viver arrogando-se o monopólio da verdade, assumindo o caráter de ser, no reino onde domina o imagético, o puro aparecer, a visibilidade ostensiva quem não se quer nem verdadeira, nem falsa, não se arroga portadora de nenhuma verdade ou parâmetro moral: o que importa é aparecer. Desse modo, ou se recusa o primado do ser sob o aparecer, ou não se entra completamente no reino do imagético. A porta para entrar no reino do imagético é larga, todos podem entrar, mas se pede um assentimento total. Tal reino pede de seus súditos apenas o puro parecer, ou seja, nada de se arrogar estatuto de verdade ou realidade.
Por isso, resta apenas uma indagação apelativa: Cristão, o que vais ostentar na continuidade, quando a tensão entre a ostentação e o teu credo se tornar mortalmente patente? Irás ostentar a própria morte da singularidade da mensagem outrora proclamada? Se assim for, inicia as exéquias, sem perder de vista que hoje até mesmo a morte pode ser ostentada. Sem perder de vista também que a nova ordem ao qual tu te adéquas oferece um tipo de ressurreição: aquela por meio das cópias, através do rito do remake. Contudo, uma vez aceitando-se a vida eterna da cópia, torna-te um apóstata completo da tua fé, e não mais apenas potencialmente, pois perde sentido toda busca por um cristianismo autêntico. Posto que, da autenticidade, daquilo que se impõem como integralmente original não resta espaço para cópias. Por fim, lembra-te que nos teus evangelhos é manifesto que não poderás servir a dois senhores. Escolhe, pois: ou o cristo Midiático, ou o Cristo dos Evangelhos. Não poderás permanecer para sempre sob a forma do Cristianismo Ostentação: ou se cristianiza, ou se ostenta. A manutenção dos dois significa a renuncia da própria fé. Mais que isso, Cristianismo ostentação não éAssim, nem objetividade, nem subjetividade, nem dentro, nem fora, sem verticalidades: há apenas as horizontalidades das aparências e das imagens. Se todo “cristão” é um apóstata em potencial, em virtude da ordem econômica perversa na qual se insere, também é atrativamente convidado a ser mais um sociopata da imagem, uma vez que é convidado a reproduzir, cinicamente ou “inocentemente”, a visibilidade ostensiva. Sociopatas da imagem são aqueles que não conseguem existir sem tornar maximamente visível a própria existência. Esta em um modo muito próprio de sentir, pois se trata de um sentir patológico, é apenas uma imagem: “ser é ser percebido”. Portanto, para o sociopata da imagem tudo está reduzido à visibilidade. Porém, não se trata de uma visibilidade qualquer, mas sim de uma visibilidade extremada. Quanto mais cresce o alcance das redes sociais, desaparecendo os espaços coletivos concretos de convivência, maior o número de sociopatas da imagem. Pois, a lógica da ostentação tem como hábitat natural as redes sociais e os mass medias. Todos querem tomar parte no espetáculo, nem que lhe caiba o papel de figuração ou do ridículo, pois ficar de fora do espetáculo significa o fracasso social. Por conseguinte, a fim de evitar o fracasso, a maior parte do cristianismo ocidental resolveu unir fé e ostentação.
Na lógica da ostentação são consideradas reais, depositárias de crédito e afetividade as coisas que fazem sucesso, porém, cumpre lembrar, este último só é alcançado com visibilidade, ou seja, com ostentação. Ora, para não perder espaço, o cristianismo ocidental, em seus mais diversos credos, não viu outra saída para sobreviver, ante o avanço da secularização, senão adequar-se à ostentação imperante. Estranha saída esta, que o cristianismo ocidental adotou: usar as formas mais avançadas da secularização para barrar a secularização, usar as formas mais avançadas do “profano” para comunicar o “sagrado”. Assumindo esta alternativa, não basta ser cristão, é preciso apresentar uma imagem condizente com o credo. Não só isso, é preciso atrair a maior visibilidade possível, logo é preciso ostentar a imagem que se quer incessantemente visível. Porém, como afirmado anteriormente, toda imagem na atualidade é potencialmente violenta, logo o cristão que aderiu à lógica da ostentação, é, por princípio violento, e uma vez submetido à ostentação, torna-se um fundamentalista inveterado, pois traz para o reino do imagético algo que lhe é estranho: a afirmação da posse do verdadeiro, o monopólio da verdade. Ou seja, o caráter de Ser que não se coaduna com o caráter de pura Aparência do imagético. Apresenta-se, pois, no caso do cristianismo ostentação uma tensão no âmbito do reino do imagético. Uma tensão já bastante discutida na tradição cultural do ocidente: a tensão entre Ser e Aparecer, Essência e Aparência, entre a realidade das coisas e suas respectivas imagens.
Adequado á ostentação, o homem religioso cristão ocidental não quer se desfazer de suas “verdades”, daquilo que para ele constitui o seu ser mais essencial. Porém, no reino das imagens, da pura aparência, noções como verdade e essência inexistem, perderam sentido de realidade, posto que: “assim é, se lhe parece”. Na visibilidade ostensiva midiática não são possíveis sinceros e honestos anúncios de verdade, promessas de um Reino divino, profecias ou messianismos. Não há nem messias, nem imagens de messias, pois a própria imagem, o imagético é o Messias. A imagem é o messias, posto que se instaurou um novo reino, uma nova ordem, onde não há mais disputas. Só há disputas e embates mortais onde se acredita estar de posse da verdade, e na posse da verdade não há lugar para aparências, ou se é ou não é. Todavia, no reino do imagético, no império da pura aparência não se disputa sobre a veracidade ou falsidade de algo, não se trata de ser ou não ser, mas apenas de aparecer. Não importa os desnudamentos de verdades essências, importa somente a circulação das imagens, e as imagens não arrogam para si nem veracidade, nem falsidade, pedem apenas visibilidade extremada,
ou seja, ostentação. Quanto mais imagens circulam, maior a visibilidade, quanto maior a visibilidade, maior o sucesso, e fazendo sucesso, se permanece. Ora, mais o que importa não é justamente permanecer, perdurar, alocar-se na duração da visibilidade? Não é esta, pois, a lógica inerente ao cristianismo ostentação? Quanto mais visível, quanto mais obedecer à paranoia da imagética hiperbólica, mais o credo assumido se fortalece: eis a lógica do cristianismo ostentação. Assim, a máxima de nosso tempo se estabelece sobre uma religiosidade completamente derrotada pela ordem prevalente. Ante a derrota, para evitar uma exposição ao ridículo, parece não haver outra opção. Resta apenas reproduzir, copiar, fazer remakes, seguir o modus operandi do “vencedor”. Contudo, tal completa adequação ao status quo não significa o desaparecimento da tensão apontada anteriormente. Não se pode viver arrogando-se o monopólio da verdade, assumindo o caráter de ser, no reino onde domina o imagético, o puro aparecer, a visibilidade ostensiva quem não se quer nem verdadeira, nem falsa, não se arroga portadora de nenhuma verdade ou parâmetro moral: o que importa é aparecer. Desse modo, ou se recusa o primado do ser sob o aparecer, ou não se entra completamente no reino do imagético. A porta para entrar no reino do imagético é larga, todos podem entrar, mas se pede um assentimento total. Tal reino pede de seus súditos apenas o puro parecer, ou seja, nada de se arrogar estatuto de verdade ou realidade.
Por isso, resta apenas uma indagação apelativa: Cristão, o que vais ostentar na continuidade, quando a tensão entre a ostentação e o teu credo se tornar mortalmente patente? Irás ostentar a própria morte da singularidade da mensagem outrora proclamada? Se assim for, inicia as exéquias, sem perder de vista que hoje até mesmo a morte pode ser ostentada. Sem perder de vista também que a nova ordem ao qual tu te adéquas oferece um tipo de ressurreição: aquela por meio das cópias, através do rito do remake. Contudo, uma vez aceitando-se a vida eterna da cópia, torna-te um apóstata completo da tua fé, e não mais apenas potencialmente, pois perde sentido toda busca por um cristianismo autêntico. Posto que, da autenticidade, daquilo que se impõem como integralmente original não resta espaço para cópias. Por fim, lembra-te que nos teus evangelhos é manifesto que não poderás servir a dois senhores. Escolhe, pois: ou o cristo Midiático, ou o Cristo dos Evangelhos. Não poderás permanecer para sempre sob a forma do Cristianismo Ostentação: ou se cristianiza, ou se ostenta. A manutenção dos dois significa a renuncia da própria fé. Mais que isso, Cristianismo ostentação não éAssim, nem objetividade, nem subjetividade, nem dentro, nem fora, sem verticalidades: há apenas as horizontalidades das aparências e das imagens. Se todo “cristão” é um apóstata em potencial, em virtude da ordem econômica perversa na qual se insere, também é atrativamente convidado a ser mais um sociopata da imagem, uma vez que é convidado a reproduzir, cinicamente ou “inocentemente”, a visibilidade ostensiva. Sociopatas da imagem são aqueles que não conseguem existir sem tornar maximamente visível a própria existência. Esta em um modo muito próprio de sentir, pois se trata de um sentir patológico, é apenas uma imagem: “ser é ser percebido”. Portanto, para o sociopata da imagem tudo está reduzido à visibilidade. Porém, não se trata de uma visibilidade qualquer, mas sim de uma visibilidade extremada. Quanto mais cresce o alcance das redes sociais, desaparecendo os espaços coletivos concretos de convivência, maior o número de sociopatas da imagem. Pois, a lógica da ostentação tem como hábitat natural as redes sociais e os mass medias. Todos querem tomar parte no espetáculo, nem que lhe caiba o papel de figuração ou do ridículo, pois ficar de fora do espetáculo significa o fracasso social. Por conseguinte, a fim de evitar o fracasso, a maior parte do cristianismo ocidental resolveu unir fé e ostentação.
Na lógica da ostentação são consideradas reais, depositárias de crédito e afetividade as coisas que fazem sucesso, porém, cumpre lembrar, este último só é alcançado com visibilidade, ou seja, com ostentação. Ora, para não perder espaço, o cristianismo ocidental, em seus mais diversos credos, não viu outra saída para sobreviver, ante o avanço da secularização, senão adequar-se à ostentação imperante. Estranha saída esta, que o cristianismo ocidental adotou: usar as formas mais avançadas da secularização para barrar a secularização, usar as formas mais avançadas do “profano” para comunicar o “sagrado”. Assumindo esta alternativa, não basta ser cristão, é preciso apresentar uma imagem condizente com o credo. Não só isso, é preciso atrair a maior visibilidade possível, logo é preciso ostentar a imagem que se quer incessantemente visível. Porém, como afirmado anteriormente, toda imagem na atualidade é potencialmente violenta, logo o cristão que aderiu à lógica da ostentação, é, por princípio violento, e uma vez submetido à ostentação, torna-se um fundamentalista inveterado, pois traz para o reino do imagético algo que lhe é estranho: a afirmação da posse do verdadeiro, o monopólio da verdade. Ou seja, o caráter de Ser que não se coaduna com o caráter de pura Aparência do imagético. Apresenta-se, pois, no caso do cristianismo ostentação uma tensão no âmbito do reino do imagético. Uma tensão já bastante discutida na tradição cultural do ocidente: a tensão entre Ser e Aparecer, Essência e Aparência, entre a realidade das coisas e suas respectivas imagens.
Adequado á ostentação, o homem religioso cristão ocidental não quer se desfazer de suas “verdades”, daquilo que para ele constitui o seu ser mais essencial. Porém, no reino das imagens, da pura aparência, noções como verdade e essência inexistem, perderam sentido de realidade, posto que: “assim é, se lhe parece”. Na visibilidade ostensiva midiática não são possíveis sinceros e honestos anúncios de verdade, promessas de um Reino divino, profecias ou messianismos. Não há nem messias, nem imagens de messias, pois a própria imagem, o imagético é o Messias. A imagem é o messias, posto que se instaurou um novo reino, uma nova ordem, onde não há mais disputas. Só há disputas e embates mortais onde se acredita estar de posse da verdade, e na posse da verdade não há lugar para aparências, ou se é ou não é. Todavia, no reino do imagético, no império da pura aparência não se disputa sobre a veracidade ou falsidade de algo, não se trata de ser ou não ser, mas apenas de aparecer. Não importa os desnudamentos de verdades essências, importa somente a circulação das imagens, e as imagens não arrogam para si nem veracidade, nem falsidade, pedem apenas visibilidade extremada,
ou seja, ostentação. Quanto mais imagens circulam, maior a visibilidade, quanto maior a visibilidade, maior o sucesso, e fazendo sucesso, se permanece. Ora, mais o que importa não é justamente permanecer, perdurar, alocar-se na duração da visibilidade? Não é esta, pois, a lógica inerente ao cristianismo ostentação? Quanto mais visível, quanto mais obedecer à paranoia da imagética hiperbólica, mais o credo assumido se fortalece: eis a lógica do cristianismo ostentação. Assim, a máxima de nosso tempo se estabelece sobre uma religiosidade completamente derrotada pela ordem prevalente. Ante a derrota, para evitar uma exposição ao ridículo, parece não haver outra opção. Resta apenas reproduzir, copiar, fazer remakes, seguir o modus operandi do “vencedor”. Contudo, tal completa adequação ao status quo não significa o desaparecimento da tensão apontada anteriormente. Não se pode viver arrogando-se o monopólio da verdade, assumindo o caráter de ser, no reino onde domina o imagético, o puro aparecer, a visibilidade ostensiva quem não se quer nem verdadeira, nem falsa, não se arroga portadora de nenhuma verdade ou parâmetro moral: o que importa é aparecer. Desse modo, ou se recusa o primado do ser sob o aparecer, ou não se entra completamente no reino do imagético. A porta para entrar no reino do imagético é larga, todos podem entrar, mas se pede um assentimento total. Tal reino pede de seus súditos apenas o puro parecer, ou seja, nada de se arrogar estatuto de verdade ou realidade.
Por isso, resta apenas uma indagação apelativa: Cristão, o que vais ostentar na continuidade, quando a tensão entre a ostentação e o teu credo se tornar mortalmente patente? Irás ostentar a própria morte da singularidade da mensagem outrora proclamada? Se assim for, inicia as exéquias, sem perder de vista que hoje até mesmo a morte pode ser ostentada. Sem perder de vista também que a nova ordem ao qual tu te adéquas oferece um tipo de ressurreição: aquela por meio das cópias, através do rito do remake. Contudo, uma vez aceitando-se a vida eterna da cópia, torna-te um apóstata completo da tua fé, e não mais apenas potencialmente, pois perde sentido toda busca por um cristianismo autêntico. Posto que, da autenticidade, daquilo que se impõem como integralmente original não resta espaço para cópias. Por fim, lembra-te que nos teus evangelhos é manifesto que não poderás servir a dois senhores. Escolhe, pois: ou o cristo Midiático, ou o Cristo dos Evangelhos. Não poderás permanecer para sempre sob a forma do Cristianismo Ostentação: ou se cristianiza, ou se ostenta. A manutenção dos dois significa a renuncia da própria fé. Mais que isso, Cristianismo ostentação não é uma morte qualquer, mas um suicídio cínico da própria fé.


Fran Alavina.

terça-feira, 6 de maio de 2014

A ONIPOTÊNCIA E A DEBILIDADE DE DEUS NA TEOLOGIA DE BONHOEFFER.

“Para Bonhoeffer não existe o deus ex-machina que, de uma hora para a outra, inverte as coisas. O ser humano secularizado precisa assumir o seu papel no mundo ‘etsi deus non daretur’ (como se deus não existisse). Cabe aos cristãos apontar rumos éticos de convivência e partilha”, afirma o pastor luterano e professor de teologia. No dia 9 de abril de 1945, morre o teólogo e pastor luterano Dietrich Bonhoeffer. Enforcado em um campo de concentração ao lado de seus familiares semanas antes do fim da 2ª Guerra Mundial, o pensador alemão é considerado um dos poucos teólogos mártires do cristianismo. O fato explica-se considerando que a academia, muitas vezes, encerra-se em discussões herméticas. Por sua vez, Bonhoeffer, como aponta Harald Malschitzky “se perguntava pela relação entre fé e vida como ela é e acontece, fato tantas vezes ignorado na teologia acadêmica”.
Malschitzky, autor de um livro sobre o teólogo alemão, relata um breve histórico da vida de Bonhoeffer, sua resistência à Hitler e à sua luta contra a nazificação da igreja. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-line, ele relata como o teólogo insistiu na defesa dos judeus, envolvendo-se até mesmo na emigração clandestina.
“A igreja não pode se limitar a cuidar de feridos e enterrar mortos”, expõe Malschitzky. “Para Bonhoeffer não existe o deus ex-machina que, de uma hora para a outra, inverte as coisas”. Com parentes e amigos no estado maior do exército alemão, o teólogo infiltrou-se em um grupo para promover a derrubada de Hitler. Suas ações, obviamente não passaram despercebidas ao governo alemão, o que levou, por fim, à sua prisão.
É no cárcere que o teólogo desenvolve boa parte de sua produção mais relevante, articulando momentos de desesperança com o terror vivido com a fé. O pensamento do alemão é uma resposta a uma grande inquietação teológica: como um Deus bondoso pode permitir o sofrimento de seus filhos? Ou ainda, como aquele que é todo-poderoso pode permitir a existência do mal?
Bonhoeffer defendia que deveríamos viver no mundo como se Deus não existisse. Não era uma forma de negar o divino, mas de assumir os destinos do mundo sob nossa própria responsabilidade. Em uma teologia cristocêntrica, onde a cruz tem grande
importância simbólica, sustenta: “Cristo nos ajuda não por sua onipotência, mas sim por sua debilidade e sofrimentos”. Harald Malschitzky, 74 anos, é pastor e professor aposentado da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB, e foi orientador de estudos na Escola Superior de Teologia – EST, em São Leopoldo. É autor de Dietrich Bonhoeffer - Discípulo, testemunha, mártir (São Leopoldo: Sinodal, 2005).
Confira a entrevista
IHU On-Line – Bonhoeffer é considerado um dos poucos teólogos (acadêmicos) mártires no cristianismo. O que o levou a tal engajamento, que findou em sua execução por enforcamento nas mãos dos nazistas?
Harald Malschitzky - Em uma igreja ortodoxa na cidade de Nürnberg (Alemanha), Bonhoeffer figura entre os ícones ortodoxos. É reconhecido como mártir para além da igreja. Sua trajetória tem diversas raízes. Ele viveu num momento em que um bom segmento da teologia (principalmente protestantes, mas não só) se perguntava pela relação entre fé e vida como ela é e acontece, fato tantas vezes ignorado na teologia acadêmica.
A teologia de Bonhoeffer era radicalmente cristocêntrica. Daí vinha a pergunta pelo significado e papel do Cristo na vida. Sua conclusão: O cristão coloca sua vida a serviço dos outros e a igreja só tem razão de ser se ela está aí para os outros. Ela não tem um fim em si mesma. Outra raiz tem a ver com sua atuação em outros países e em seu engajamento ecumênico.
Em 1930 ele fez um intercâmbio com um seminário em Nova York, a partir do qual conheceria as comunidades negras (em tempo de segregação racial), que passaria a frequentar. O canto alegre, os testemunhos, mas principalmente a ligação da fé com a realidade e a esperança de novos tempos aqui e agora, causaram tanto impacto, que o próprio Bonhoeffer classifica o tempo como uma espécie de conversão. Na mesma época, a Alemanha via a ascensão de Hitler. O parágrafo do arianismo era aplicado também na igreja (pastores e padres de ascendência judia deveriam ser demitidos), a tomada da igreja pelos teuto-cristãos (Deutsche Christen) já se avizinhava, o cerceamento e perseguição aos judeus era crescente.
De volta à Alemanha, já em 1933 ele refletia sobre o poder ilimitado de Hitler e os seus riscos. No mesmo ano ele se ocupou diversas vezes com a questão dos judeus. Envolveu-se na criação da Igreja Confessante, coordenou a formação clandestina de pastores, se empenhou no mundo ecumênico para que a igreja estatal alemã não fosse reconhecida, se empenhou em abrir os olhos de outros países para a tormenta no horizonte alemão.
Dentro desse cenário, um enorme empenho teológico cristalizava sempre mais o reconhecimento de que o empenho cristão pelo ser humano pode implicar ações
políticas radicais. Em relação à questão dos judeus, por exemplo, ele foi categórico: “Somente tem direito a cantar gregoriano aquele que defender os judeus”.
Ele mesmo se envolveu na emigração clandestina de um grupo de judeus. Em relação à loucura de Hitler, uma conclusão: A igreja não pode se limitar a cuidar de feridos e enterrar mortos. Era preciso arrancar do volante do carro aquele que machuca e mata. Com parentes e amigos no estado maior do exército alemão, ele se infiltrou nesse grupo para promover a derrubada de Hitler.
Ele era uma espécie de agente da causa no mundo ecumênico. É claro que suas ações e seus passos eram vigiados. Sucessivamente foram cassados os seus campos de atuação na universidade, a publicação de seus livros, o seminário clandestino de Finkelwalde (que seria reaberto na Pomerânia). Em 1943 ele foi preso, passou por algumas prisões e campos de concentração até que, em 9 de abril de 1945, foi executado, com outras pessoas do grupo, em Flossenbürg, no sul da Alemanha.
IHU On-Line – Que teologia Bonhoeffer desenvolveu a partir da sua vivência nos campos de concentração? Que entendimento ele teve de Deus diante dos horrores que envolveram o nazismo?
Harald Malschitzky - É interessante que Bonhoeffer não desenvolveu uma teologia específica na prisão. As centenas de cartas (publicadas em Resistência e Submissão) revelam uma enorme confiança em Deus e a clareza de que cristãos e igreja só têm razão de existir em função dos outros. Parte de sua Ética, por exemplo, publicada de forma fragmentada, foi escrita na prisão, assim como alocuções de casamento e batismo, textos que expressam uma tremenda confiança em Deus.
Orações escritas para outros prisioneiros dão conta de uma fé enorme em um Deus que cuida de sua criatura. Não que não houvesse também dúvidas e questionamentos. A poesia Quem sou eu expressa bem as duas coisas. Uma oração escrita para outros presos mostra como convivem a fraqueza e a certeza da ajuda de Deus:
Dentro de mim está escuro, mas em ti há luz/
eu estou só, mas tu não me abandonas/
eu estou desanimado, mas em ti há auxílio/eu estou inquieto, mas em ti há paz/
em mim há amargura, mas em ti há paciência/
não entendo os teus caminhos, mas tu conheces o caminho certo para mim.
(Escrita em novembro de 1943). Para Bonhoeffer não existe o deus ex-machina que, de uma hora para a outra, inverte as coisas. O ser humano secularizado precisa assumir o seu papel no mundo etsi deus non daretur (como se deus não existisse). Cabe aos cristãos apontar rumos éticos de convivência e partilha. Aqui uma razão a mais para a decisão pessoal e radical de Bonhoeffer como cristão.
É ilustrativo que nos campos de concentração ele passava muito tempo conversando com funcionários e guardas que o vigiavam, porque, antes de tudo, eram criaturas amadas por Deus e muitos sofriam com o que acontecia. Os horrores do nazismo (e
outros tantos) precisam ser debitados na conta do ser humano que se brutaliza e se deixa brutalizar. Humanamente, é quase inconcebível que isso aconteça. Hannah Arendt se dedicou com afinco à reflexão e ao estudo da brutalidade, à banalização do mal, justamente a partir do genocídio levado a cabo pelo regime nazista e de forma especial tendo assistido ao julgamento de Adolf Eichmann.
IHU On-Line – Como se deu a divisão do posicionamento do protestantismo frente à ascensão do nazismo? Qual a importância da Igreja Confessante nesta conjuntura?
Harald Malschitzky - Um grande número de leigos e pastores na igreja evangélica se identificava com o nacional-socialismo. Esses “teuto-cristãos” ou “cristãos alemães” concordavam com as medidas de Hitler com base no parágrafo ariano extensivas à igreja. Uma eleição convocada em última hora, em 1933, deveria eleger um bispo identificado com o nazismo. Bonhoeffer e outros se empenharam, por meio de uma forte panfletagem, em favor de outro candidato; 70% dos votantes escolheram o candidato da situação, Ludwig Müller. Em seguida Bonhoeffer e seu grupo elaboraram um documento que se tornou conhecido como Confissão de Bethel, que seria a base para a “Confissão de Barmen”, base da Igreja Confessante. Nesse período Bonhoeffer aceitou o convite para trabalhar por um período em uma comunidade em Londres, mas acompanhava atentamente o desenrolar dos acontecimentos em seu país e em sua igreja tanto por notícias como por visitas a Berlim. Não participou diretamente da elaboração da “Declaração de Barmen”, mas se identificou com seus propósitos.
De 29 a 31 de maio de 1934, se reuniu uma assembleia que, em seis pontos, condenou a doutrina dos teuto-cristãos, criando-se oficialmente a Igreja Confessante em oposição à igreja protestante que se identificava com o nazismo. O cerne da declaração e a base da Igreja Confessante estão traduzidos nas seguintes palavras da Confissão de Barmen:
“Condenamos à falsa doutrina segundo a qual a igreja pode e deve reconhecer como fonte de sua pregação, além e ao lado da única palavra de Deus, ainda outros acontecimentos e poderes, figuras ou verdades como se fossem revelações de Deus”.
No início a Igreja Confessante era tolerada, mas isso não duraria muito. No mundo ecumênico, Bonhoeffer se empenhou, logo em 1934, no sentido de que a Igreja Confessante fosse reconhecida como única representante legítima do protestantismo da Alemanha. O Conselho Mundial de Igrejas convidara representantes das duas igrejas para uma conferência na Dinamarca, em 1934.
Um desafio para a Igreja Confessante, logo de início, foi preparar pastores e pregadores para as comunidades. Eles vinham dos bancos da universidade, sem prática alguma. Foram criados cinco seminários de pregadores, ficando um deles, o da Pomerânia, sob orientação de Bonhoeffer. Ele funcionou primeiro em um lugar à beira do Mar Báltico e logo foi transferido para Finkenwalde. A Igreja Confessante sempre foi minoria, e não é preciso mencionar que ela e todos os seus passos foram sendo controlados, cerceados e finalmente proibidos. Muitos dos seus integrantes pararam em campos de concentração. Terminada a guerra, em outubro de 1945, cristãos que tinham suas raízes na Igreja Confessante elaboraram e publicaram a Confissão de Culpa de Stuttgart na qual eles assumem culpa, entre outros, por omissão diante do nazismo.
IHU On-Line – O teólogo defendia que deveríamos agir como que em um mundo sem Deus, mas não como forma de negar o divino. Como explicar este pensamento frente ao momento histórico vivido por Bonhoeffer?
Harald Malschitzky - Bonhoeffer achava que o processo de secularização radical iria às últimas consequências. Sua pergunta era como a igreja poderia falar e agir com o mundo secularizado, que não necessariamente negava a Deus, mas que assumia os destinos do mundo sob própria responsabilidade.
Um dos pontos-chave na agenda dessa humanidade secularizada deveria ser a paz, única forma de sobrevivência. O papel da igreja universal seria convocar para a paz. Em agosto de 1934, quando já estava claro que Hitler queria guerra, em uma convenção ecumênica na Dinamarca, Bonhoeffer diz: “Como se concretiza a paz? Quem convoca para a paz de forma tal que o mundo o ouça, seja obrigado a ouvir?
Somente o grande concílio ecumênico da santa igreja de Cristo de todo o planeta poderá fazê-lo de maneira que o mundo, rangendo os dentes, tenha que ouvir a palavra da paz, e os povos fiquem felizes, porque esta igreja de Cristo arrancará as armas das mãos de seus filhos em nome de Cristo, proibindo-lhes a guerra e proclamando a paz de Cristo a todo este mundo delirante”.
Não houve concílio, nem toda a sabedoria e capacidade diplomática e política do ser humano secularizado evitaram a guerra; boa parte de cristãos protestantes e católicos foram a favor da guerra. Todos tiveram que ver e sofrer a fúria do mal matando e destruindo indistintamente.
IHU On-Line – Como compreende, nesse sentido, a reação de Deus frente ao sofrimento de Seu Filho na cruz diante da morte, e como essa reação é também a reação de Deus diante do nosso sofrimento?
Harald Malschitzky - A Bíblia conhece momentos da ausência de Deus. O próprio Cristo sentiu esse abandono na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” Toda a questão do sofrimento vicário do próprio filho de Deus continua em discussão. Como Deus podia concordar com isso?
Bonhoeffer, mesmo não compreendendo o seu Deus, enxergava a sua bondosa mão também por detrás do sofrimento. Era sua fé, que o mesmo Deus acompanhava seus filhos e filhas em todos os momentos. Não vamos encontrar em Bonhoeffer a tentativa de explicar isso de forma racional e lógica. Eu pessoalmente confesso que tenho aqui todas as dificuldades. A ausência de Deus por vezes é angustiante. Continuo, porém, na busca de respostas.
IHU On-Line – “Cristo nos ajuda não por sua onipotência, mas sim por sua debilidade e sofrimentos”, afirma Bonhoeffer. De que forma reconhecer a existência de um Deus onipotente, ainda que “débil”, abre caminho para o livre arbítrio?
Harald Malschitzky - O ser humano não é marionete de Deus. Ele foi criado com liberdade e recebeu a incumbência de cuidar do mundo e da criação. Segundo o testemunho bíblico, Deus admoesta e procura indicar e corrigir o rumo da humanidade através de pessoas (pensemos na figura dos profetas).
O livre arbítrio (que não é tão livre assim) não me parece tão problemático, mas sim a arbitrariedade pura e simples praticada pelo nazismo, mas infelizmente não só por ele. O Cristo em sua debilidade acompanha as pessoas nas suas derrotas, dando força e ânimo para continuar, à revelia de tudo. Sua mensagem, vivida e sofrida é de paz e comunhão e de respeito justamente pelos seres mais debilitados. Sem dúvida, a debilidade tem seus riscos.
IHU On-Line – Como explicar, a partir do pensamento de Bonhoeffer, a atuação divina durante os tempos sombrios da Shoah? Como manter e defender a fé em Deus frente ao massacre de tantas pessoas?
Harald Malschitzky - Bonhoeffer não conheceu o conceito de Shoah, pois este seria aplicado ao genocídio impetrado pelo nazismo somente depois de terminada a guerra. Mas o que estava acontecendo não lhe era desconhecido. A Shoah sem dúvida mexe nos alicerces da fé de qualquer cristão e todos os grandes e pequenos programas de reparação promovidos por povos e igrejas não o mudam.
Acho que não se trata de defender a fé em Deus, mas de testemunhá-la para que se encontrem formas de paz duradoura para todos os povos e crenças (ou descrenças!). Este testemunho não nasce em uma fé heroica, mas da debilidade que se limita a dizer: “Senhor, eu creio, ajuda-me na minha falta de fé”.
IHU On-Line – Deseja acrescentar alguma coisa?
Harald Malschitzky - O martírio não era aspiração de Bonhoeffer, embora essa questão já tenha sido levantada. Verdade que ele, em certo momento na prisão, pensou no suicídio, mas não como ato de coragem, e sim porque tinha medo de não suportar as torturas e acabar traindo todo o movimento que queria tirar Hitler do poder. Nos EUA, Bonhoeffer conheceu um teólogo católico, Jean Lassere, pacifista decidido. Num dos diálogos Lassere teria manifestado que ele desejava ser santo. Bonhoeffer se limitou a dizer que seu desejo era “aprender a crer”.